Partindo de uma “visão estratégica” para o território desenhada pela autarquia de Idanha-a-Nova – apostada em reverter o processo de despovoamento iniciado há décadas –, um novo pólo de conhecimento científico, centrado na agricultura biológica e sustentável, nasceu na Beira Interior.
Na lista de municípios portugueses com maior área, Idanha-a-Nova figura no quarto lugar: são 1416 quilómetros quadrados, ocupados na sua maioria por terrenos agrícolas, entre os quais campos de oliveiras a perder de vista a partir de uma fugaz passagem de carro. No entanto, na imensidão do território esconde-se uma das suas feridas mais profundas: o processo de despovoamento que, “desde 1950”, originou a perda de “70% da população”. Não se trata, é certo, de um problema circunscrito, mas a forte e abrangente resposta que este mereceu por parte da autarquia é reveladora da urgência em resolvê-lo.
Em 2015 e sob o propósito de “inverter a percepção negativa da ruralidade”, foi feito um “trabalho de identificação e levantamento dos constrangimentos” que motivavam a saída de pessoas e impediam, paralelamente, a sua fixação, quando não eram naturais dali. A partir da informação recolhida, foi desenhada uma “estratégia a médio e longo prazo”, intitulada “Recomeçar”. “Fomos à procura, através de parcerias, de estratégias de desenvolvimento e tentámos perceber as que se adaptavam ao nosso território”, revela Armindo Jacinto, presidente da autarquia ao PÚBLICO. Foi precisamente neste contexto que nasceu, entre outros, o programa Idanha Green Valley.
O uso da expressão em inglês é uma referência à meca californiana do desenvolvimento tecnológico ao longo da última década, Silicon Valley, mas também uma declaração de compromissos. Tirando partido da ruralidade que caracteriza o concelho, a “diferenciação” (uma das prioridades da estratégia) foi alcançada a partir da aposta na agricultura biológica, particularmente com recurso a tecnologias – a semente estava lançada. “Existe um conjunto de questões inerentes ao desenvolvimento da produção agrícola e agro-alimentar, que se pretende que sejam mais sustentáveis.” Na procura de respostas, a Building Global Inovators (BGI) foi uma das entidades contactadas.
Enquanto “aceleradora de startups”, a BGI ficou incumbida de estruturar “programas concretos de aceleração de projectos empresariais” que já começavam a mexer por ali – e criar condições para a fixação de outros. Durante um ano dedicaram-se a “estudar a região” e em 2016 avançaram com a primeira edição do i-Danha Food Lab, um evento anual composto por conferências, workshops, jantares, visitas a empresas e, por fim, um “demo day” – oportunidade para a apresentação, perante um júri do Instituto Europeu de Inovação e Tecnologia (EIT), de projectos na vertente de alimentação, com um prémio de 10 mil euros a concurso. “A primeira edição foi um evento de disseminação e de teste”, conta Gonçalo Amorim, fundador e director da BGI. “Chamámos peritos internacionais para discutirem a temática e validámos que, a nível internacional, aquilo que estávamos a fazer tinha relevância e que havia uma comunidade em curso que podia ser agregada.”
Servindo-se do exemplo da produção intensiva de bovino (embora a ideia se aplique a outras culturas), Gonçalo garante que as práticas correntes “não são sustentáveis do ponto de vista do consumo da água, dos serviços dos ecossistemas e de rações. Todas essas cadeias de valor começam a ter um impacto muito grande nos lençóis freáticos, na poluição, em tudo o que advém dessa intensificação”, ressalva. A negação e inversão destes pressupostos esteve na génese do salto seguinte: a idealização de um sistema sustentável e circular agro-alimentar, em que um alimento é produzido de forma menos nociva, sem pesticidas, herbicidas ou insecticidas, e com menor recurso a água – com tudo o que isso implica para a cadeia alimentar e saúde do consumidor. Não se trata de algo novo, mas, em muitos casos, o desconhecimento impossibilita a replicação.
Gonçalo Amorim, director da BGI, entidade proponente do CoLab, defende a idealização de um sistema agro-alimentar sustentável e circular, que permita “valorizar o produto” – o que não significa encarecê-lo, que “seria distorcer o mercado”. paulo pimenta
Aplicar conhecimento à resolução de problemas concretos
Foi neste contexto que, em 2019, surgiu o CoLab (Laboratório Colaborativo) de Idanha-a-Nova, uma estrutura que terá como objectivo “aplicar o conhecimento que já existe à resolução de problemas práticos e concretos”, partindo do know-how de empresas, associações e instituições de ensino superior. Posteriormente, essas descobertas serão disponibilizadas aos produtores que desejem adoptar práticas mais sustentáveis, com potencial de sequestro de carbono, e, consequentemente, “valorizar o seu produto”, que não é o mesmo que encarecê-lo: “Não pode ser. No CoLab não acreditamos que o produto acabado seja mais caro por ser biológico, seria distorcer o mercado.”
Atendendo ao objectivo assumido de converter mais agricultores ao método biológico, todo o trabalho do laboratório, baptizado como FoodLab, terá uma forte componente demonstrativa, o que passará por medições, pela quantificação da biologia e por demonstrações do impacto e resultado do uso de determinados químicos onde tudo começa, no solo. “O que estamos a promover é um solo forte, com microbiologia, e que vai produzir uma planta mais forte e mais resistente às alterações climáticas.” O efeito, defende, não demorará a reflectir-se em “frutos ou vegetais mais ricos”, já que os “nutrientes existentes na terra chegam à planta por via da água e dos mecanismos de transporte”.
Segundo Gonçalo Amorim, há já trabalho a ser feito por algumas empresas neste âmbito: “Estão a varrer os solos, através de técnicas não invasivas, para perceber o que está em défice no solo.” Fazem-no, sobretudo, com recurso a tecnologia de ponta e são, no contexto FoodLab, projectos que se pretende que sejam “catalisadores de transformação”.
Introduzido em 2017 pelo ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Manuel Heitor, o conceito CoLab visa complementar a estrutura científica existente no país, permitindo a comunicação entre empresas, centros de investigação e universidades. Ainda assim, a criação de emprego altamente qualificado é o objectivo máximo destas estruturas. No caso de Idanha-a-Nova, estima-se que “20 postos de trabalho” sejam criados ao longo dos próximos “três anos”, enquanto resultado directo da instalação do organismo, e outras “centenas” de forma indirecta. Para já, encontram-se abertas 13 vagas especializadas, que deverão ser preenchidas até ao final de Novembro, quando está previsto o início da implementação dos projectos
A constatação de que os vegetais biológicos que consumia não provinham de sementes biológicas levou a belga Bettina Doeblin a dedicar-se à produção, investigação e reprodução de sementes, com a Living Seeds.
Um ecossistema de parcerias
No conjunto de entidades fundadoras do FoodLab (15 no total), incluem-se pequenas e médias empresas, instituições de ensino superior e associações representativas do tecido empresarial de Idanha-a-Nova. São parte essencial do processo de transferência de conhecimento, mas não só. Após a aprovação da candidatura, os parceiros deverão constituir-se como “associações privadas sem fins lucrativos ou empresas” e avançar com um terço do orçamento – o restante será providenciado pela Fundação da Ciência e Tecnologia (7,8 milhões de euros a cinco anos) e pela prestação de serviços à comunidade ou candidaturas a programas internacionais.
A Living Seeds — Sementes Vivas insere-se no grupo das PME. A empresa criada em 2015 dedica-se à produção, investigação e reprodução de sementes biológicas segundo o método biodinâmico. Surgiu de um “interesse pessoal” de Bettina Doeblin e do seu marido de então. Embora a curiosidade pela agricultura biológica sempre tenha existido, o momento de viragem só surgiu quando Bettina se deu conta de que os vegetais biológicos que consumia não tinham origem em sementes igualmente biológicas. “É um detalhe, mas chocou-me quando descobri.”
A procura que se seguiu, por mais informação, levou-a aos países do Mediterrâneo, onde o negócio das sementes biológicas era praticamente inexiste. Foi aí que conheceu Idanha-a-Nova, território que lhe permitiu concretizar o desejo de mudar de vida – após anos a residir em Bruxelas –, e avançar com um negócio que encontrou o espaço ideal nos terrenos cedidos pela autarquia, no âmbito do programa Idanha Green Valley. Cinco anos volvidos, o cenário não se alterou drasticamente no plano internacional. Como tal, o futuro da Sementes Vivas passará pelo reforço das exportações, sem descurar o “compromisso” assumido com Portugal.
“O que estamos a promover”, defende Gonçalo Amorim, “é um solo forte, com microbiologia, e que vai produzir uma planta mais forte e mais resistente às alterações climáticas”, que resultará em “frutos ou vegetais mais ricos”.
Sobre o CoLab, Bettina não tem dúvidas de que os resultados da sinergia poderão dar resposta a muitas das necessidades sentidas pela agricultura biológica sustentável, principalmente no que diz respeito à renovação de técnicas. “Não é um sector que, na sua essência, esteja próximo da tecnologia, mas é algo de que precisamos: tecnologia responsável e que apoie os princípios básicos desta agricultura.” De facto, esta preocupação poderá ser respondida pelas duas linhas orientadoras que se pretende ver conjugadas nos projectos que, a partir de Novembro, começarão a ser trabalhados pelo FoodLab.
Apesar de não figurar na lista de parceiros formais, a AgroDrone irá aportar o seu contributo “técnico” ao trabalho desenvolvido pelo FoodLab. A empresa de Pedro Santos, que opera na área da agricultura de precisão, através de mapeamento aéreo com drones e de análise de solos, candidatou-se ao evento anual da BGI (entidade proponente do CoLab de Idanha-a-Nova) em 2017, tendo da participação resultado um conjunto de “contactos e oportunidades”, nomeadamente a nível europeu, com o EIT. Para o engenheiro agrónomo, a criação de uma estrutura agregadora de conhecimento como o FoodLab é uma “iniciativa fantástica”, já que, “a nível nacional, praticamente não há estudos e testes de eficiência para este tipo de metodologias”, sustenta.
Joana Rosa, presidente da cooperativa olivícola Coopagrol, acredita nos benefícios da “partilha de sinergias” para a descoberta de novas soluções para velhas questões – como a rentabilização do bagaço da azeitona.
Iniciativa “multidisciplinar e plural”
A aposta em práticas que não comprometam a biodiversidade na actividade agrícola é prioritária tanto na estratégia implementada pela autarquia como no trabalho que o laboratório colaborativo almeja desenvolver. No caso da olivicultura, Joana Rosa, presidente da Cooperativa Agrícola dos Olivicultores do Ladoeiro (Coopagrol), acredita que muitos produtores já o fazem “sem saber”, tendo em conta o pouco tratamento dado às oliveiras.
Ainda assim, também a Coopagrol espera beneficiar da “partilha de sinergias”, por exemplo através da descoberta de novas formas de aproveitamento do bagaço, um subproduto da azeitona (“70% da sua composição”) que representa um dispêndio crescente para o sector. “Há uma preocupação com os subprodutos e em encontrar uma maneira de os rentabilizarmos, introduzindo-os, preferencialmente, num contexto natural e não de indústria.”
A constituição da equipa do FoodLab, numa lógica “multidisciplinar e plural”, é, para Joana, a grande vantagem da iniciativa. “Somos pessoas oriundas de áreas distintas e com visões diferentes, o que é o melhor caminho para que a partilha e discussão de ideias possa dar frutos.” Biológicos, de preferência.