O populista João Miguel Tavares e as entranhas da administração pública

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João Miguel Tavares entrou numa deriva estranha para um liberal: passa o tempo a pedir uma classe política melhor, esquecendo-se de deixar claro que quando ela aparece, como com Passos Coelho, é trucidada por uma sociedade e uma imprensa institucionalmente fraquíssimas.

Vou por isso, agora que estou à beira da reforma, fazer uma descrição das entranhas da administração pública, a partir da minha experiência pessoal, acabando num despacho recente de nomeação de quatro dirigentes da administração pública que ilustra bem a minha tese: não, não precisamos de políticos moralmente superiores (não porque não fosse melhor ter políticos moralmente superiores, mas porque, a prazo, isso é uma improbabilidade, se não for mesmo uma impossibilidade), precisamos é de sociedades institucionalmente mais fortes, o que implica melhor escrutínio, o que é difícil de obter a partir do estado miserável em que se encontra a imprensa e da anomia da sociedade.

Em 2003, houve um concurso para director do Parque Natural de Sintra-Cascais, a que concorri e foi ganho por um dos quatro dirigentes agora nomeados, nas circunstâncias que descrevo neste post de 2009, tendo feito um requerimento de candidatura a outro concurso, de que transcrevo apenas a parte final: “Se, pelo contrário, e em vez do que se poderia admitir da leitura dos avisos publicados sobre a matéria, o pedido dos curricula for uma mera formalidade, e a necessidade de cumprimento do código do procedimento administrativo nesta matéria for também dispensável, como aconteceu no concurso anterior para a direcção do Parque Natural de Sintra-Cascais, mais se justifica a reutilização do curriculum já entregue, tanto neste como noutros processos de selecção, evitando-se assim a sistemática reprodução de curricula cuja função parece ser sobretudo a de ornamentar as candidaturas dos simples de espírito que se envolvem de boa-fé nestes processos”.

Ao longo dos anos fui-me cruzando várias vezes com este meu colega, a última das quais quando, tendo eu ganho um concurso e este meu colega ficado em segundo, acabei por recusar o lugar, que foi ocupado por este meu colega agora livremente nomeado pelo Governo para outro lugar (declaração de interesses, a que concorri, como explico aqui). O que aconteceu é que se eu tivesse tomado posse do lugar seria superior hierárquico da minha mulher, coisa a que me recusei terminantemente (eu levo os conflitos de interesse a sério), tendo a minha mulher, numa situação de vulnerabilidade pessoal que eu tinha evidentemente de respeitar, recusado qualquer hipótese de mudança para outro departamento.

Pelo meio cruzámo-nos nas mais diversas situações, tendo este meu colega sido meu director de serviço quando eu era chefe de divisão, situação que o levou a avocar o processo do Freeport quando me recusei a infringir a lei para aprovar o projecto (claro que qualquer superior hierárquico meu poderia fazer um despacho explicando por que razão a proposta da minha divisão chumbar o projecto estava errada, alterando-a por isso, mas por razões que só eles podem explicar, preferiram afastar a minha divisão do processo e acompanhá-lo directamente, até à sua aprovação final).

Outra das fricções de que me lembro foi quando uma colega nossa, que eu conhecia dos corredores, mas com quem não tinha especial proximidade e não era da minha unidade orgânica, me veio pedir conselhos sobre o que fazer numa situação de evidente abuso de poder e assédio. Espantado com o facto de essa minha colega me ter vindo pedir a mim conselhos sobre o que fazer, comentei com as colegas que conhecia melhor e eram da minha unidade orgânica a minha estranheza. Explicaram-me que tinham sido elas a sugerir que falasse comigo porque todas tinham histórias semelhantes com a mesma pessoa e confiavam no meu bom senso para se ver a melhor forma dessa colega (profundamente abalada, porque a história era bem mais grave) se defender (foi há anos suficientes para o contexto ser muito diferente do que é hoje, em relação a este tipo de histórias).

Mas quem nomeou este senhor não conhece estas histórias, apesar da história do Freeport ser conhecida, o curriculum é suficientemente sólido para justificar a nomeação e a imprensa não costuma escrutinar estas carreiras sempre na sombra do poder (nem os serviços e colegas contribuem com a sua memória), apesar de serem às palettes entre as pessoas que, seja qual for o governo, andam sempre por ali, umas porque são verdadeiramente boas no que fazem, outras porque são verdadeiramente boas na gestão de influências.

Questão diferente é a que diz respeito a outra das pessoas nomeadas, que não conheço de todo e acredito que seja uma pessoa estimável, que tem o seu curriculum publicado no despacho que o nomeia director regional de florestas e conservação da natureza, sem concurso, evidentemente (com este curriculum, ninguém ganha um concurso para este lugar, por mais tendencioso que seja o júri), e que transcrevo sem comentários, até porque escrevo sobre isto há muito tempo, como aqui, por exemplo.

“Licenciou-se em Economia em 1995, pela Universidade de Évora. Em 2007, concluiu o curso de especialização do POCAL – Auditoria e Controlo Interno em 2007, no ISLA, no Instituto Superior de Leiria. Atualmente está a realizar a dissertação final do mestrado em Contabilidade e Finanças, na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Iniciou a sua atividade profissional em 1995 como docente na Escola Tecnológica e Profissional da Sertã, onde lecionou as disciplinas de Organização e Gestão de Empresas e de Cálculo Financeiro. No mesmo ano, passou a desempenhar o cargo de diretor financeiro e administrativo, até 1998.

Desde 1998, é técnico superior de economia no Município da Sertã, onde também ocupou o cargo de chefe da Divisão Económica e Financeira (entre 2004 e 2010) e de diretor do Departamento de Administração e Finanças (entre 2010 e 2021).

Em 1999, em 2022 e em 2024, respetivamente, foi sócio fundador das sociedades CONTASERTÃ – Informática e Contabilidade, L.da, Cloud Adept, L.da, e 24HabSolutions, L.da Em todas desempenhou o cargo de gerente. Possui vasta experiência na apresentação e execução de inúmeras candidaturas/projetos de financiamento aos mais diversos fundos.

Paralelamente, desde 2012, desempenha o cargo de presidente do conselho fiscal da Associação de Futebol de Castelo Branco. Desde 2023, é presidente da Assembleia Geral da Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental do Pinhal, instituição da qual foi também sócio fundador.

É membro da Ordem dos Contabilistas Certificados, desde 1996, e da Ordem dos Economistas, desde 1997.

De 2014 (sua fundação) a 2022, foi presidente da direção do SerQ – Centro de Inovação e Competências da Floresta.

No período entre 2011 e 2013, foi project partner do Consórcio Europeu eRnet – Rural Web Energy Learning Network for Action.

Entre 2010 e 2012, esteve como coordenador de Comunicação e Disseminação do Consórcio Europeu RETS – Renewable Energies Transfer System”.

E agora vou esperar sentado que um só jornalista vá perguntar à senhora ministra do ambiente e ao senhor ministro da agricultura a que propósito nomeiam um contabilista sem qualquer experiência relevante no sector como director regional de florestas e conservação.

Nomeiam porque podem e lhes falta sentido de Estado, é verdade, mas podem porque as regras são absurdas, porque os jornalistas e a pessoas comuns não se incomodam com o assunto e, consequentemente, não há custo político nenhum em fazer nomeações destas e porque os serviços que aconselham os governantes são, eles próprios, maioritariamente produto de esquemas manhosos de gestão.

Pelo contrário, há um custo político altíssimo quando se contrata um Paulo Macedo a ganhar balúrdios, porque realmente é bom no que faz, não havendo custo político nenhum em nomear centenas de pessoas cuja qualificação para o lugar até pode existir, mas não está demonstrada em lado nenhum.

Caro João Miguel, mais escrutínio é bom, estamos de acordo, mas o problema não está essencialmente nos escrutinados (esses confirmam que a natureza humana é o que é), está nos escrutinadores e nas regras, formais ou informais, em que se baseiam estes processos de decisão.

O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.


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