Henrique Pereira dos Santos

O programa de governo e o estado da oposição – Henrique Pereira dos Santos,

Com certeza não li o programa de governo todo, é o tipo de coisa que só se lê por dever de ofício e eu não tinha nenhuma razão para ler tudo.

Mas li algumas partes e estranho que o essencial dos comentários que tenho lido sobre o programa de governo é o de que é um conjunto de proclamações gerais inócuas, largamente consensuais.

Que é um conjunto de proclamações gerais parece-me inegável.

A conclusão sobre serem “inócuas e largamente consensuais” é que diz mais de quem lê e avalia que do programa de governo propriamente dito.

Vejamos alguns exemplos.

“Dar continuidade às ações constantes do Programa Nacional de Ação para a Adaptação às Alterações Climáticas (P3AC), completando a cobertura de todo o território nacional com planos ou estratégias de adaptação às alterações climáticas, promovendo a sua integração nas políticas e estratégias setoriais e a incorporação nos Planos Diretores Municipais;” Não há nada de consensual que possa ser subscrito por qualquer pessoa neste parágrafo do programa de governo, pelo menos para mim: Planos são papéis, o que é preciso é que pessoas e instituições ajam no sentido que se pretende, o que se resolve com os incentivos económicos certos, e não com o aumento de planos e estratégias.

“Ordenar o território e tornar as comunidades mais resilientes, desenvolvendo as medidas do Programa de Ação do Programa Nacional da Politica de Ordenamento do Território (PNPOT) que asseguram a concretização dos 10 Compromissos para o Território, promovendo a revisão dos Programas Regionais do Ordenamento do Território (PROT), em linha com o definido no PNPOT, assegurando a integração da gestão do risco nos Planos Diretores Municipais, alargando a informação cadastral simplificada em todo o território nacional, associando-a ao cadastro predial, incentivando a diversidade de atividades em áreas rurais, procedendo à abertura de corredores ecológicos que permitam a salvaguarda dos valores naturais e a proteção contra incêndios, identificando e responsabilizando as entidades na origem das situações de contaminação do solo, reduzindo a necessidade de intervenção do Estado para remediar situações de poluição provocadas por terceiros e continuando o trabalho de desenvolvimento da Plataforma da Geodiversidade, integrando a instrução de processos de licenciamento, os pedidos de pareceres a entidades e a georreferenciação em polígono;”, dizem eles, Tudo isto é metafísica. Nada do que está aqui dito contribui para que pessoas e instituições tomem decisões alinhadas com os objectivos a atingir porque os problemas são de natureza económica e as soluções aqui propostas são de natureza administrativa e legal, digo eu.

“Reforçar em linha com o PNPOT e com as agendas de sustentabilidade o reforço da política de cidades e do seu papel na estruturação do modelo policêntrico e funcional do território, articulando a rede urbana com repostas eficazes ao território rural;”, diz o Governo,  Em relação ao PNPOT e subsequentes políticas de ordenamento do território, a única coisa relevante seria fazer uma avaliação séria e independente da utilidade que estes planos têm tido para levar as pessoas e instituições a agir de acordo com o que se pretende. Reforçar políticas intrinsecamente erradas não as faz dar melhores resultados que os atingidos até agora, digo eu.

“Reduzir os riscos de catástrofes, intervindo no espaço rural com a manutenção da diversificação da paisagem e diminuindo a carga de combustível, aumentando a resiliência a cheias através de bacias de retenção e de infiltração, aumentando o grau de preparação para as catástrofes, designadamente através de campanhas de formação e sensibilização para o risco, fomentando junto dos docentes a utilização do Referencial de Educação para o Risco (RERisco) de modo a sensibilizar a comunidade educativa para uma cultura de prevenção, concretizando a Estratégia Nacional para uma Proteção Civil Preventiva conjuntamente com a implementação de um modelo de governança, gestão e avaliação do risco coordenado e multissetorial, modernizando os sistemas de vigilância florestal e de recursos hídricos e os instrumentos de apoio à decisão operacional, alargando a 100% do território nacional o sistema de videovigilância florestal, reforçando os mecanismos de aviso e alerta precoce para situações de emergência, instalando pontos de abastecimento destinados ao combate a incêndios em zonas rurais, aumentando a qualificação, especialização e profissionalização dos agentes de proteção civil e consolidando o pilar da proteção civil municipal através de plataformas locais de redução de risco de catástrofes, reconhecendo o conhecimento e valorizando os agentes mais próximos dos cidadãos;”, diz o programa de Governo, Todo este ponto corresponde à defesa de um modelo que é aplicado desde 2005/ 2006, com péssimos resultados. Em vez desta conversa toda, cara e estatista, o que se deveria estar a discutir é o pagamento do serviço de gestão do fogo aos operadores económicos do mundo rural (100 euros por hectare para quem atinja objectivos de gestão de combustível previamente definidos), digo eu, que não acho nada consensual a loucura descrita e aplicada há mais de dez anos, com custos brutais e sem resultados relevantes na gestão do problema identificado.

Poderia continuar pela política florestal, de conservação, pela ideia peregrina e perigosa de soberania alimentar (das poucas inovações deste programa de governo em relação ao que era conhecido, infelizmente uma inovação no sentido errado) mas iria estar a repetir-me incessantemente, como demonstro dando mais um exemplo:

“Conservar a natureza e recuperar a biodiversidade, continuando a promover a cogestão das áreas protegidas e a conclusão dos Programas Especiais das Áreas Protegidas, aumentando o investimento, envolvendo a comunidade na conservação dos valores naturais, instituindo dinâmicas de participação na vida das áreas protegidas, facilitando a sua visita pelos cidadãos, promover a fixação das populações residentes em áreas protegidas, estimulando práticas de desenvolvimento sustentável, melhorando os sistemas de comunicação e gestão de valores naturais com vista à promoção dos valores ambientais e do conforto e da qualidade da visita, disponibilizando, em várias línguas, mais e melhor informação sobre o património natural das áreas protegidas, a par de uma melhoria da cobertura de redes de dados móveis, permitindo a substituição progressiva da informação em suporte físico por informação digital, expandindo o projeto-piloto dos serviços dos ecossistemas para todos os parques naturais;”, diz o programa de governo, Mais uma vez, a problemas de gestão do património, que são essencialmente económicos, pretende-se dar resposta com instrumentos regulamentares e legais. É assim há dezenas de anos, e há dezenas de anos que o resultado é muito mau, digo eu, realçando que esta opção de “evolução na continuidade” é uma velha tradição dos governos fracos e já da outra vez deu muito mau resultado, a prazo.

Fico por aqui, de outra maneira seria um ainda mais longo post para ilustrar uma ideia simples: o problema deste programa de governo não é ser muito genérico e inócuo, é mesmo o de acolher políticas estruturalmente erradas, que flanqueiam os problemas em vez de os resolver a partir de avaliações sérias dos resultados das políticas executadas no passado.

O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.


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