Tem tradição? Tem!
Tem “peros” endógenos? Tem!
Tem sabores variados? Tem!
Tem futuro? Tem!
Tem história como niiiiinguém!
A métrica encaixa-se, e bem, na célebre música de Carmem Miranda. E tem graça, tem.
É verdade, existe uma região de Portugal onde há a tradição de fazer e beber sidra. Onde nunca deixou de ser produzida e onde tem um futuro brilhante.
Comecemos por falar do que em tempos se chamou “vinho de peros”, um termo agora proibido.
Historicamente, a Madeira teve várias vagas de imigrantes. Todas elas vinham com o objectivo de intensificar a produção agrícola, tornando-a mais habitável. Quem conhece a Madeira e as suas escarpas íngremes que sobem a altitudes de 1.200 metros, reconhece os famosos socalcos, individualizados em poios, técnica trazida do Velho Continente, de locais igualmente íngremes, e de difícil, ou muitas vezes impossível, acesso. Esta técnica, de fazer muros para sustentação ou proteção das terras foi e é utilizada em todas as nossas ilhas.
A Madeira, pelo seu clima e solo, teve a particularidade de ser um laboratório de espécies vegetais que vinham e iam para “novos mundos”. A espécie mais representativa deste laboratório terá sido, porventura, a cana do açúcar, que estagiou nesta ilha antes da sua viagem para o Brasil.
Com os primeiros agricultores vieram espécies que formam o seu bioma agrícola. Uma das espécies ancestrais terá sido o pereiro, como lhe chamam na Madeira, mas tecnicamente seria mais correcto falar de macieira – iremos manter-nos na denominação local, que aporta regionalismo e a especificidade local da linguagem.
Estas árvores, arbustivas, em conjunto com os muros, ajudavam a proteger de ventos e chuvas fortes, permitindo uma melhor cultura da tão escassa e difícil terra arável.
Não se podendo encontrar variedades endémicas de pereiros há, no entanto, algumas delas que estão na ilha há mais de 400 anos, encontrando-se, por isso, devidamente adaptadas às condições edafoclimáticas locais.
A Universidade da Madeira está a fazer a classificação e identificação rigorosa das variedades locais, mas o saber empírico de quem trabalha o campo diariamente aponta para mais de 100 espécies, sendo que mais de 30 já fazem parte do catálogo nacional de variedades.
Entre os pêros mais identitários e presentes nas atuais sidras estão: pêro Domingos, pêro Calhau, pêro da Ponta do Pargo, maçã Barral, maçã Cara-de-dama e maçã da Camacha, pêro Amargo, pêro Branco, pêro Boal, pêro da Festa, pêro Focinho de Rato, pêro Vime, pêro Bico de melro, pêro de Ouro, pêro Pevide, pêro Rajado, pêro Rijo, pêro Riscado, maçã Baionesa, maçã Espelho e maçã Parda e, nalguns casos, também a pêra do Santo e pêra Tenra de São Jorge.
É desta diversidade, mas também da forte influência inglesa, que nasce a sidra madeirense. A sidra é popular em Inglaterra desde a Época Romana e, ainda hoje, o país é um dos três maiores produtores a nível mundial. Foram os ingleses que introduziram muitas variedades na Madeira, que ensinaram a arte de transformação, bem como o hábito de consumo.A história da sidra na Ilha perde-se com os tempos. Acredita-se que a sua produção tenha começado logo que os primeiros pereiros produziram frutos suficientes para que o primeiro sumo pudesse ser extraído.Por escrito, são os relatos do cronista Gomes Eanes de Zurara (1410-1474) que mostram a sua existência. Relatos estes, corroborados pelas listas de mantimentos das armadas Portuguesas que, a partir do início do século XVI, faziam escala para reabastecer nos vários portos da Ilha e levavam consigo este precioso “vinho”, termo utilizado à data.
A produção desenvolveu-se paralelamente à produção de vinho de uva, este com fins economicamente mais lucrativos. O “vinho de Peros” ficava para os trabalhadores agrícolas e era feito exactamente com as mesmas técnicas e, muitas vezes, nas mesmas instalações.
Acredita-se que em tempos de escassez de sumo de uva, o vinho Madeira tenha sido feito com base na sidra. Este processo foi proibido a partir do final do século XIX. Mas que semelhança organoléptica tem a sidra com esse vinho mundialmente tão reconhecido? Já lá chegaremos.
Ao sumo do pêro juntam-se também as pêras, que existem em alguma abundância. Em todo o caso, é fácil imaginar o esforço humano despendido para extrair o sumo de pêros em comparação com o sumo de uvas. É preciso partir a fruta, dias a fio, com batidas verticais feitas com vigas de madeira dura, os malhos. Só mesmo o grande gosto que os madeirenses têm pela sidra fez com que a produção resistisse, ano após ano.
Isso e a geografia.
A Ilha da Madeira está localizada na região subtropical do Atlântico Norte. O clima ameno, de pouca amplitude térmica nas cotas mais baixas, faz com que só entre os 300 e 1.000 metros de altitude as pomóideas (família de árvores a que as maçãs, pêras e marmelos pertencem) se dêem, visto necessitarem de maiores diferenças de temperatura e algum frio.
O solo, maioritariamente vulcânico, rico em matéria orgânica e de elevada acidez, e a exposição solar variada contribuem para a criação de microclimas, dando origem a uma diversidade de maturação de fruta infinita.
Não admira que os alimentos produzidos na Ilha da Madeira fiquem, por isso, cunhados com traços de acentuada doçura mas com uma acidez que os equilibra, tornando-os enigmáticos e únicos.
Não fogem desta regra também as uvas. O Vinho Madeira, apesar da amplitude entre secura e doçura, tem indiscutivelmente uma acidez característica balanceada com aromas oxidativos criados pela presença do oxigénio durante o processo, algo que o torna inconfundível.
E é este ponto que a sidra da Madeira tem em comum com o Vinho Madeira. A sua acidez vibrante e laivos oxidativos permitem identificá-la de forma inequívoca — e deixam antever um futuro que ainda agora começou a ser descoberto.
Mas se a história mais distante da sidra na Madeira remonta há mais de 400 anos, o último século foi de adormecimento no que diz respeito à evolução tecnológica e de conhecimento. O hábito de produção e consumo nos últimos 100 anos reduziu-se a um local específico: Santo da Serra, uma das vilas mais elevadas da Ilha.
A existência de pereiros e pereiras mantém-se por toda a Região Autónoma, mas muitas vezes a sua produção é desperdiçada e abandonada nos campos. As árvores cumprem sobretudo a sua função de proteção do vento e de vedação.
É com a chegada do Padre Rui Sousa, originário da região do Santo da Serra, à freguesia dos Prazeres, na outra ponta da ilha, praticamente na sua antípoda, que ressurge o interesse pela sidra.
Naquele lado da Ilha, o desperdício da fruta era tanto e a preservação da diversidade dos pereiros tão frágil que motivou Rui Sousa a voltar a fazer sidra nos antigos lagares.
Desde logo, arregaçou as mangas e começou a colecionar variedades quase extintas. Ao fim de dois anos, entendeu que teria algo importante entre mãos e que poderia fazer melhor. Pediu apoio técnico à Secretaria Regional de Agricultura, que lhe destacou a Engenheira Agrícola Regina Pereira, com formação em enologia. E eis que se abriu uma caixa de Pandora. Durante os últimos 15 anos, o processo não tem parado de evoluir.
No último ano, foram construídas duas sidrarias: uma nos Prazeres e outra no Santo da Serra. Ambas irão trabalhar em pleno, pela primeira vez, no ano 2021. E o desenvolvimento de mais unidades está previsto para breve, não só unidades de produção, mas de conhecimento, fruto do interesse que esta bebida tem gerado em quase todos os setores, desde a produção de fruta à sua comercialização.
Dadas as especificidades tão únicas, a Sidra da Madeira foi qualificada como IG ( Indicação Geográfica) pela Comunidade Europeia, e para breve prevê-se a sua evolução para outros patamares. É a primeira Sidra IG nacional, com características muito diversas e próprias.
Com um grau alcoólico que varia entre 5 e 7% (de volume), possui uma variedade de cores que vão do amarelo pálido ao brilhante caramelo com laivos laranja. Aroma de maçãs verdes a maduras, marmelo ou até citrinos e baixas concentrações de açúcar residual, devido a fermentações quase completas, acentuam a sua acidez e as características mais ou menos taninosas e adstringentes das múltiplas variedades de pêros que as podem compor.
Mostram, por tudo isto, a promessa de uma panóplia infindável de sidras. A que se desenvolve, neste momento, é natural, sem adição de nada além do sumo dos pêros, controlando apenas as fermentações com temperaturas relativamente baixas ou envelhecendo em garrafa ou barricas. Todas as sidras têm características diferentes, todas espelham o microclima e variedades que lhes deram origem.
Pela Ilha já não vai sendo regra beber sidra com açúcar e vidrado de limão, como foi hábito. E já podemos provar uma sidra fria, com ou sem gás adicionado, ou aquecida e guarnecida com várias especiarias e em cocktails, para dominar o frio do Inverno.
Podemos, ainda, provar as mais variadas sidras que são feitas por todo o território, com especial destaque para as dos Prazeres, Jardim da Serra, São Roque do Faial e, claro está, Santo da Serra.
Na colheita de 2020, a Secretaria de Agricultura Regional promoveu a transformação, em condições tecnicamente melhor adaptadas, para a produção de uma bebida de qualidade superior e com menor esforço humano, a cerca de 16 produtores.
Começa agora o desenvolvimento do conhecimento: das variedades de pêros e respectivas características; das várias formas que a sidra pode obter, seja espumosa ou tranquila; da evolução com o envelhecimento; e tantas outras questões que irão aparecer conforme o estudo se for desenrolando.
É por todos estes detalhes, pela história secular, que a Sidra da Madeira é uma das mais vibrantes (re)descobertas dos próximos anos.
-Teresa Vivas
O artigo foi publicado originalmente em EGGAS.
Sidra da Madeira – Indicação Geográfica Protegida: nova Consulta Pública