O que esperar da Presidência Portuguesa da União Europeia? – Jaime Piçarra

Portugal vai assumir a partir do próximo dia 1 de Julho e durante todo o 2º semestre de 2007, pela terceira vez na sua história, a presidência da União Europeia, num momento que poderemos denominar de “pausa para reflexão” nos grandes dossiers comunitários: desde o alargamento aos Balcãs (Croácia, Sérvia ou Macedónia) e à Turquia, à reforma das instituições comunitárias, a grande questão da Constituição Europeia na sequência das recusas da França e da Holanda (e convêm não esquecer as consequências das eleições presidenciais francesas, com a vitória dos conservadores) e o aprofundamento das relações com os EUA e com a Rússia.

Ao nível dos dossiers que interessam mais directamente à indústria agro-alimentar, destacam-se a reforma da PAC pós-2013 e a simplificação das Organizações Comuns de Mercado (OCM), ou seja a proposta de uma única OCM, a questão do orçamento comunitário depois de 2013 e o peso (cada vez mais reduzido) da agricultura, a evolução das negociações ao nível da Organização Mundial do Comércio (OMC) e o problema das alterações climáticas e das energias renováveis, sendo claramente prioritário o dossier dos biocombustíveis no grande objectivo da redução da emissão de gases com efeito de estufa.

De resto, pensamos que este é actualmente um tema central para a Europa, uma vez que o Ambiente constitui hoje o grande objectivo aglutinador dos cidadãos europeus e factor de coesão entre os Estados-membros (divididos em quase tudo), como aconteceu com a concretização do Mercado Único ou com a Moeda Única (€).

Tal significa que as questões ambientais e tudo o que lhe está directa ou indirectamente ligado – desde os licenciamentos até ao problema das energias renováveis e a sustentabilidade – tenderão a estar na ordem do dia e a influenciar cada vez mais o desenvolvimento da indústria agro-alimentar e, em particular, a indústria dos alimentos compostos para animais.

Passados 15 anos desde a nossa primeira presidência, podemos dizer que temos hoje uma outra Europa e um contexto completamente diferente.

Decorreram entretanto 3 alargamentos, primeiro com a entrada da Áustria, Suécia e Finlândia (de 12 para 15 países), em 2004 com os 10 novos membros do Centro e Leste da Europa e finalmente, a Roménia e a Bulgária, com um alargamento bastante complicado, uma vez que se tratam de países em que a agricultura tem um grande peso em termos económicos e sociais, numa altura em que este Sector perde importância relativa na União Europeia que entretanto se foi tornando um bloco reforçado nos seus aspectos políticos e de cidadania e não um mero espaço económico como acontecia aquando da entrada de Portugal e Espanha, em 1986.

É evidente que pelo meio tivemos algumas reformas da Política Agrícola, negociações ao nível da OMC, mercados mais abertos e desprotegidos e crises alimentares que colocaram em causa o modelo de produção europeu (sobretudo quando a PAC consumia 60% do orçamento comunitário), ganhando maior amplitude as questões ligadas aos consumidores e os problemas ambientais.

A presidência de 1992 foi marcada pela reforma da PAC, tendo como pano de fundo a diminuição dos excedentes estruturais (cereais, leite em pó, carne de bovino), medidas de controlo de produção (por exemplo o set-aside nas culturas arvenses) e uma harmonização dos preços europeus aos preços do mercado mundial.

Foi o início da reconquista do mercado dos cereais pela alimentação animal mas igualmente, em termos conceptuais, o início do declínio da agricultura e dos instrumentos de política que lhe estavam associados.

A agricultura assume a noção de multifuncionalidade, ou seja, passa a ser encarada não só como produtora de bens alimentares mas também como protectora do ambiente e do espaço rural, enquanto produtora de serviços para a sociedade. Deste modo, começam a ganhar importância as questões ambientais.

É na presidência de 1992 que é aprovada a reforma da PAC, sendo introduzida a especificidade da agricultura portuguesa, dadas as limitações de cariz estrutural não resolvidas ao longo da integração comunitária. É também nesta altura que se avança para o Mercado Único, em 1993, com a harmonização dos preços nacionais aos comunitários, a abertura das trocas comerciais intra-comunitárias e as contrapartidas monetárias daí decorrentes, como são exemplo o desmantelamento do elemento fixo de protecção à Indústria e a eliminação dos contingentes de importação dos produtos animais (carnes, leite e ovos) provenientes do mercado comunitário.

Em 2000, a segunda presidência é exercida no rescaldo das crises alimentares, designadamente da BSE, no Reino Unido e em Portugal, e das dioxinas na Bélgica e de crises institucionais ao nível da própria Comissão Europeia.

Em Janeiro é lançado o Livro Branco sobre a Segurança Alimentar que constituiu uma espécie de “cartilha” de toda a legislação alimentar, do qual emergem alguns aspectos fundamentais: uma visão harmonizada entre a alimentação animal e humana, a criação da Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos (EFSA) e do sistema de alerta rápido (RASFF), a rastreabilidade e os regulamentos sobre higiene dos géneros alimentícios e alimentos para animais e o grande conceito “do prado ao prato”, em que todos os sectores são co-responsáveis ao longo da cadeia alimentar.

Consolida-se deste modo a importância da alimentação animal na saúde e bem-estar animal mas igualmente na segurança dos produtos de origem animal e o seu papel na segurança e confiança dos próprios consumidores.

É também durante esta presidência que é avançada uma nova proposta de rotulagem sobre os alimentos compostos para animais, a conhecida “fórmula aberta”, em que se propunha a discriminação da percentagem de incorporação das matérias-primas (mais tarde veio a ser aprovada uma tolerância de +- 15%) e, o mais grave em termos da violação da propriedade intelectual e do know-how das empresas, a obrigatoriedade de fornecer a fórmula exacta a pedido do cliente.

Este processo arrastou-se ao longo de diversas presidências e em 2006, o Tribunal Europeu considerou que o fornecimento da fórmula a pedido do cliente deveria ser retirado da Directiva mas o processo ainda não terminou. Curiosamente vai regressar à agenda da presidência portuguesa, 7 anos depois, no âmbito da revisão da etiquetagem, agora que o ambiente político é bem mais calmo nestas matérias.

Para além destes aspectos importantes, merecem ainda destaque a criação da DG SANCO, em que a tutela da alimentação animal saiu da agricultura para a área da saúde e protecção dos consumidores, as organizações de consumidores e ambientalistas ganharam importância e poder de decisão no interior da União Europeia.

A legislação, que até então era feita a partir dos agricultores e dos produtores, passou a ser elaborada, prioritariamente, na defesa dos interesses dos consumidores e nasce o processo de co-decisão entre o Conselho e o Parlamento Europeu.

A presidência inicia-se com uma importante Conferência internacional sobre biodiversidade em Montreal apesar de, no final de 1999, o Ministério da Agricultura já ter suspendido as variedades transgénicas que tinha aprovado nesse mesmo ano, dando sinais claros das suas prioridades na defesa das questões ambientais.

No âmbito da discussão da Agenda 2000 que culminaria em 2003 com a PAC que temos actualmente, emerge a ideia do desligamento das ajudas, da orientação para o mercado e do reforço das ajudas ao desenvolvimento rural. Entretanto, durante este período, as crises alimentares e a discussão pública e mediática em volta do tema ajudam a promover o conceito de agricultura biológica e os problemas ambientais ganham uma importância acrescida e irreversível.

É o início da ruptura com o modelo agrícola do passado.

Apesar de todos estes aspectos, a presidência de 2000 fica marcada pela “Agenda de Lisboa” cujo objectivo é a promoção do crescimento e do emprego e fazer da União Europeia o espaço mais competitivo do mundo.

Um designio que ficou pelo caminho mas que volta a ganhar visibilidade na agenda da próxima presidência portuguesa, juntamente com a simplificação da legislação. Por outro lado, a Comissão Europeia já percebeu que a Europa tem custos administrativos e de contexto que lhe retiram competitividade num contexto de crescente globalização e de desregulamentação dos mercados a nível mundial e esta é uma das prioridades da Comissão Barroso.

O que podemos esperar então em 2007?

Existem questões que regressam à agenda política como a fórmula aberta ou a Agenda de Lisboa, apesar de, em termos mediáticos, a presidência poder ficar marcada pela Cimeira Europa/África e pela ratificação dos objectivos da “Lisbon Agenda”.

Vejamos no entanto, quais as nossas expectativas nos principais dossiers com maior impacto para a indústria agro-alimentar:

  • Política Agrícola Comum:

Denominado como “Health Check” ou “Bilan de Santé”, o balanço da PAC está previsto para 2008 e 2009 mas a Comissária da Agricultura já antecipou o início da discussão para o 2º semestre de 2007. Pretende-se uma ampla discussão, não só para preparar a PAC pós 2013 mas também as medidas que devem ser adoptadas de forma a preparar uma transição suave e sem rupturas.

Para Portugal, constituirá um momento de grande importância, sobretudo depois da aprovação do Plano de Desenvolvimento Rural (PDR) e do Quadro Comunitário (QREN) para o período 2007/2013. Todos deveremos ser chamados a intervir neste processo e certamente que não podemos desperdiçar esta oportunidade, que poderá assumir-se como o principal dossier da nossa presidência.

  • Biocombustíveis:

Trata-se de um dossier prioritário para a indústria agro-alimentar que tem vindo a alertar as instituições nacionais e europeias para os riscos da concorrência entre a energia e a alimentação, decorrentes do aumento dos preços das principais matérias-primas, os cereais (sobretudo milho) e oleaginosas.

A nível mundial os primeiros sinais de inquietude já se fizeram sentir, na sequência do aumento dos preços da carne nos EUA e da tortilha, no México.

Há que investir rapidamente na 2ª geração de biocombustíveis (celulósicos e lenho-celulósicos, microalgas) e em matérias-primas que não concorram com a alimentação humana e animal, sem pôr em causa a promoção e desenvolvimento da agricultura e do mundo rural.

Não é admissível que seja a política energética a pagar a futura política agrícola (cujo peso no orçamento para 2008 ronda os 33%, um valor histórico) sobretudo quando a orientação da PAC vai no sentido de se orientar a produção para os mercados. Apesar de se tratar de um problema mundial e não europeu ou nacional, é evidente que não podemos deixar de aproveitar as oportunidades do mercado mas há que tratar esta questão com bom senso porque não existem matérias-primas nem stocks disponíveis para a alimentação nem para satisfazer a procura de biocombustíveis e estes, para serem competitivos terão de ser fortemente subsidiados.

Decorre uma consulta pública sobre este dossier até 4 de Junho mas perspectiva-se que a 2ª geração só possa ser competitiva a partir de 2015. De acordo com as últimas simulações da Comissão, os preços dos cereais poderão aumentar entre 3 a 6% e os óleos entre 5 a 18%; os preços dos bagaços de colza poderão registar uma quebra de 40% e a terra arável para este mercado tenderá a ocupar entre 14 a 16% na União a 27, no horizonte 2010.

Portugal já assumiu que este será um dossier prioritário para a sua presidência, estando em agenda – depois do Conselho de Março ter ratificado a estratégia apresentada pela Comissão para as energias renováveis (20% energias renováveis, com um mínimo de 10% para os biocombustíveis – a Directiva sobre energias renováveis, a revisão das normas para o biodiesel, a Directiva sobre a qualidade do fuel e o problema da investigação em novas tecnologias.

  • Codex Alimentarius:

O país que detêm a presidência coordena as reuniões desta instituição conjunta da FAO e da OMS, ao nível da participação da União Europeia.

Sendo já uma evidência que ao nível das negociações da OMC, não vai ser possível a abordagem das questões ditas não comerciais (segurança alimentar, saúde, ambiente e bem-estar animal), o que é indiciado pela estratégia do Comissário Kyprianou de implementar um “logo” europeu, as participações no Codex Alimentarius ganham particular relevância, sobretudo no modelo que foi adoptado quer com a IACA, quer com a FIPA, em que estas organizações integraram as delegações oficiais portuguesas.

É nestes fóruns que a União Europeia poderá sensibilizar o mercado mundial para a harmonização de regras, de conceitos e de procedimentos que promovam a segurança alimentar e a competitividade.

Para além dos assuntos gerais, os aspectos mais importantes são os ligados à rotulagem, contaminantes, resíduos de medicamentos, resistência anti-microbiana, higiene e biotecnologia porque cada vez mais as questões ligadas à avaliação e comunicação do risco são essenciais, sem esquecer o problema das contaminações cruzadas e a “tolerância zero”.

  • Biotecnologia:

Depois do lançamento da estratégia da Comissão sobre Biotecnologia, promovendo a investigação, a inovação e a comunicação, aparentemente favorável aos OGM, os movimentos de oposição aos transgénicos lançaram uma campanha sobretudo ao nível das chamadas “zonas livres” e tenderão a intensificar essas movimentações durante a nossa presidência.

Outro problema por resolver tem a ver com o milho Herculex cuja variedade está aprovada nos EUA, Japão e Canadá e não na União Europeia e que tem bloqueado as exportações de corn glúten feed para a Europa e a sua utilização na alimentação animal, com os consequentes aumentos de custos e perda de competitividade da Pecuária e da Indústria.

Espera-se que, face à aprovação da parte da EFSA, que esta questão seja desbloqueada em Junho. Estando previstas novos eventos de milho em 2007, espera-se que na nossa presidência seja dado um forte impulso a uma estratégia de avaliação simultânea das variedades na União Europeia e nos Estados Unidos, face à crescente utilização de transgénicos no mercado mundial.

  • Organização Mundial do Comércio (OMC):

Trata-se de um dossier em que a margem de manobra da presidência deverá ser muito reduzida. EUA, União Europeia, Brasil e Índia já fizeram saber que pretendem assinar um acordo até final de Junho e que a ronda de Doha deverá ficar encerrada até final de 2007.

Uma agenda que deverá ficar uma vez mais adiada, uma vez que se aguardam sinais de fortes cedências da parte dos EUA em matéria de apoio interno à sua agricultura, não sendo de esperar quaisquer sinais relevantes antes das eleições presidenciais norte-americanas. A única certeza é a de que os subsídios à exportação irão ser eliminados até 2013 mas subsistem as questões centrais relativas ao acesso ao mercado e apoio interno.

  • Etiquetagem:

Tendo como pano de fundo a modernização e a simplificação no quadro do dossier mais conhecido como “Better Regulation”, a Comissão vai avançar com uma proposta concreta de revisão da etiquetagem durante a nossa presidência, aguardando-se um documento de discussão em Setembro.

No que respeita à alimentação animal, a proposta pode vir a acabar com a fórmula aberta que, já se concluiu, nada tem a ver com segurança alimentar mas existem muitos eurodeputados que, apesar da decisão do Tribunal Europeu de Justiça, insistem na cedência da fórmula exacta (agora em condições de confidencialidade) aos respectivos clientes.

A revisão acontece igualmente ao nível da alimentação humana, não sendo de excluir uma abordagem semelhante entre os 2 sectores. Por definição, pensamos que só deverá ser etiquetado o que puder ser controlado, sob pena de fornecermos informações erradas aos nossos clientes.

Trata-se sem dúvida de um dos dossiers mais importantes da nossa presidência e que estará em foco, tal como todos os outros, em Junho, no âmbito do Congresso da FEFAC que decorrerá no Porto, na Fundação Serralves, ou em Outubro, no Congresso da FIPA.

Para além destes dossiers que serão seguramente analisados pela presidência portuguesa, não podemos esquecer outras questões, designadamente o problema dos coccidiostáticos, da aprovação dos aditivos, dos contaminantes, o “road map” sobre a BSE (farinha de peixe e a eventual reutilização das farinhas animais) ou as contaminações cruzadas, a criação de uma OCM única ou o combate à obesidade, uma questão que é hoje considerada como um problema de saúde pública e que, a par da promoção de uma alimentação e de estilos de vida saudáveis, constituem uma das principais prioridades da Comissão e que irão obrigar a recentrar o papel da alimentação, animal e humana.

Poder-se-á pensar, por ser um período de “pausa para pensar”, que esta presidência não terá qualquer importância, que nada de relevante pode acontecer.

Não é de excluir que assim suceda mas não partilhamos dessa opinião, sobretudo porque se trata de um período de grande visibilidade para o nosso país e onde podemos tirar partido das organizações europeias como a FEFAC ou a CIAA para reforçarmos as defesas dos nossos interesses, seja junto do Conselho, da Comissão, do Parlamento Europeu, da OMC ou do Codex.

Deste modo, e porque vivemos num período de grandes reflexões e, consequentemente, de grandes incertezas, a presidência portuguesa poderá ser ainda mais importante para o nosso futuro colectivo, pela capacidade de chamar a atenção para os nossos problemas, de minorar os nossos estrangulamentos e de influenciar as decisões que serão tomadas em definitivo em 2008 e 2009.

Nesta perspectiva, trata-se de uma oportunidade que não devemos perder, numa óptica que sempre defendemos, de cumplicidade e da criação de sinergias entre as nossas organizações e a Administração Pública.

E esta pode ser de facto a única e a última oportunidade…

Jaime Piçarra
Assessor da IACA e coordenador do Grupo de Trabalho Política Agrícola e Relações Externas da FIPA

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