O rio Lis: também um problema secular – António Campeã da Mota

O titulo desta crónica é inequivocamente inspirado no trabalho publicado pelo LNEC na série “testemunhos” da autoria do Engº. Rui Sanches (1996): “ O Problema Secular do Mondego e a sua resolução”, pois ao avaliar os efeitos produzidos pelas cheias do passado mês de Fevereiro relembrei “… a luta inglória entre o homem que faz diques“ e o rio ” … que à porfia lhos destrói, zombando e deixando como lembrança estéreis areias sobre os campos marginais …”.

Na verdade, e mais uma vez, “… devido à excepcional cheia do rio Lis, rebentou a comporta de alimentação do canal VII, provocando a inundação de grande parte da zona baixa das Salgadas, não, obstante os esforços desenvolvidos para se conseguir impedir a saída da água do rio Lis. Todos os esforços, porém, foram inúteis, tendo as águas atingido as termas de Monte Real e invadido os balneários, provocando ainda prejuízos avultados nas culturas então existentes, particularmente na zona das termas.

As águas acumuladas naquela zona, atingiram o passeio da estação elevatória das Salgadas, o que representa uma subida de 2,15 metros em relação ao plano de água normal dentro do tanque de bombagem.”

O que atrás se transcreve não foi a notícia publicada na imprensa como resultado da cheia de 11 e 12 de Fevereiro passado, mas sim o que consta do relatório de actividades da Associação de Regantes e Beneficiários do Vale do Lis relativamente ao ano de 1966. A semelhança com o que se passou quase 50 anos depois é, no mínimo, inquietante.

De facto, e tal como foi amplamente noticiado o rombo no dique da margem esquerda do rio entre Monte Real e a Carreira, junto ao açude insuflável das Salgadas provocou danos avultados numa vasta área de terrenos agrícolas, no Parque desportivo e no Complexo Termal de Monte Real.

Acontece, porém, que os efeitos da subida incontida do nível da água, que originou em alguns locais o galgamento dos diques com arrastamento do material do aterro, e os inevitáveis rombos seguido de inundação dos campos marginais, não se limitam à zona baixa das Salgadas. A devastação amplamente divulgada pela comunicação social foi muito mais extensa: colector de Amor, colector do Boco, escorregamentos e ravinamentos em várias zonas dos taludes externos e internos do rio Lis, colapso de vários canais, submersão de estações de rega e drenagem …

Não havendo qualquer dúvida sobre a necessidade de intervenção urgente e inadiável, com vista a garantir a integridade dos bens afectados pelas rupturas ocorridas, há, todavia, que, de uma vez por todas, encarar que os prejuízos envolvidos nestas situações excedem a actividade agrícola, já que são afectadas habitações e equipamentos não associados à agricultura.

A Obra do Lis tal como foi desenvolvida nos anos cinquenta do século passado constitui inequivocamente o primeiro aproveitamento hidráulico de fins múltiplos, com relevante impacto económico, social e no ordenamento da região de Leiria, no qual ressalta o carácter dominante das obras fluviais e marítimas sobre a obra de rega.

É verdade que, tal como é entendido nos dias de hoje, o aproveitamento de fins múltiplos, mercê do carácter restrito da definição, exclusivamente ligado à utilização da água, parece não encaixar nesta Obra.

Acontece porém, que se por um lado a agricultura é o único utilizador/consumidor do recurso hídrico, por outro, os benefícios do Aproveitamento ultrapassam largamente o sector agrícola, sendo certo que a execução da Obra não teve como objectivo único criar condições para o aproveitamento agrícola dos campos marginais.

À Associação de Regantes e Beneficiários do Vale do Lis foram outorgadas em Dezembro de 1963 competências (responsabilidades) para a boa gestão de cerca de 37 km de colectores de encosta e 135 km de uma rede baixa de enxugo. Mas será justo exigir que seja a agricultura a suportar, em exclusivo, os encargos decorrentes da conservação dos diques longitudinais de todo o Vale do Lis? Penso que não, mas é apenas a minha opinião.

António Campeã da Mota
Engenheiro Agrónomo

Regadio: Gestão ou Governança? – António Campeã da Mota


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