O sapo, o monge e o escorpião – Carlos Neves

Há algum tempo atrás, alguém que conhece bem os relacionamentos na cadeia de valor da produção agro-alimentar fez uma interessante comparação da realidade actual com uma antiga história, cujo autor desconheço:

“Era uma vez um Escorpião, que vivia nas margens de um rio. Um dia, depois de uma grande chuvada, a água do rio começou a subir de forma ameaçadora para o Escorpião. Este, ao ver que a água não parava de subir e seguramente iria chegar à sua toca, o que o faria morrer afogado, começou a chamar um sapo que descansava numa pedra e pediu-lhe para o transportar nas suas costas até à outra margem. O Sapo disse-lhe que não, porque sabia que o Escorpião lhe picaria e lhe provocaria a morte. Mas o Escorpião, com toda a sua capacidade de argumentação, lá convenceu o sapo a transportá-lo e assim aconteceu. Quando iam no meio do rio, o Escorpião picou mesmo o Sapo, envenenando-o. O sapo, antes de morrer ainda teve tempo de perguntar ao Escorpião: “- Porque me picaste? Agora morreremos os dois!”. O Escorpião, respondeu ao Sapo, dizendo-lhe apenas: ” – Está na minha natureza””.

Esta história é uma boa comparação com a realidade de quem precisa dos fornecedores mas vai “ferrando” reduções de preços, sem se importar com o aumento de custos de produção, nomeadamente os custos de alimentação animal e a consequente insustentabilidade das explorações agro-pecuárias.

Por outro lado, sendo um alerta sério e realista, a história tem um final trágico, diferente de uma outra história do escorpião, de autor também desconhecido:

“Um Monge e seus discípulos caminhavam por uma estrada, quando viram um escorpião a ser arrastado pelas águas. O Monge correu pela margem do rio, meteu-se na água e agarrou o bicho. Quando o trazia para fora, o escorpião picou-o e, devido à dor, o homem deixou-o cair novamente no rio. Foi então à margem e socorrendo-se de um ramo de árvore, entrou no rio, segurou o escorpião e salvou-o sem ser picado. Os discípulos, que assistiam perplexos à cena, perguntaram-lhe então porque salvara o animal se, afinal de contas, ele tinha sido mau para ele ao picá-lo. O Monge ouviu tranquilamente os comentários e respondeu: “Ele agiu conforme sua natureza, eu de acordo com a minha, e não permiti que a sua natureza mudasse a minha.””

Que lições podemos tirar destas histórias?

O primeiro caso é um bom exemplo da “lei da selva” que é o capitalismo selvagem, sem regras, onde se espera que funcione a “mão invisível do mercado”; Já sabemos que não funcionou na área financeira, mas deixamos agora avançar a especulação nos mercados de matérias-primas para a alimentação animal e a jusante o domínio da grande distribuição como porteira do consumo alimentar;

Repare-se também que o sapo sabia o que faria o escorpião mas deixou-se levar pela conversa sem tomar precauções; é esta a realidade de muitos que produzem mas não se organizam e mobilizam para se proteger. Em sentido contrário, o monge aprendeu com a primeira agressão e usou o pau como arma para defesa pessoal e também protecção do escorpião cujo mal acabaria por provocar danos fatais a si próprio; do mesmo modo, quem asfixia a produção e/ou transformação, destrói a capacidade produtiva de quem lhe fornece matérias-primas essenciais e, de forma indirecta, a economia local e a capacidade de consumo, acabando como vítima das próprias acções.

No mundo actual, os “sapos” não podem evitar os “escorpiões” na travessia do rio que separa a produção do consumo; A sua companhia é inevitável mas não pode ter o final trágico da história.

Não se espere que os escorpiões, por si, se auto-regulem. É da natureza humana e da economia livre procurar o máximo lucro, comprar o mais barato possível, conquistar a máxima quota de mercado, procurar sempre o crescimento, que se não for possível à custa do consumidor ou da concorrência irá ocorrer asfixiando o produtor. Por isso, compete ao Estado e concretamente ao Governo regular o mercado de modo a evoluir da lei da selva para uma sociedade humana, equilibrada e sustentável, com partilha de esforços e resultados entre produção, indústria e distribuição. Sabemos que não é uma tarefa fácil e exigirá a paciência e persistência de monge, mas terá de ser feita com urgência. Tenhamos fé mas façamos força!

Carlos Neves
Presidente da APROLEP – Associação dos Produtores de Leite de Portugal

Tempestade perfeita – Carlos Neves


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