O Sector Leiteiro nacional: da reforma da PAC à ultrapassagem da quota? – Fernando Cardoso

DA REFORMA DA PAC…
No passado dia 22 de Janeiro, a Comissão apresentou formalmente as propostas legislativas para a reforma intercalar da Política Agrícola Comum, as quais vêm no seguimento da sua Comunicação ao Conselho efectuada em Julho de 2002. No plano das medidas de carácter horizontal, não apresentam alterações substancias em relação aos princípios orientadores defendidos pela Comissão no documento inicial, tendo em conta que mantêm o desligamento das ajudas, e a sua modulação e redução progressiva no tempo (degressividade).

No entanto, ao nível sectorial existem alterações significativas, como é o caso do sector do leite, em que as propostas legislativas excedem de forma evidente as meras sugestões de antecipação das reformas da Agenda 2000 e de redução assimétrica dos preços de intervenção da manteiga e do leite em pó, ou as opções para o sistema de quotas no período pós-2008, apresentadas em Julho. A Comissão advoga agora reduções muito severas e progressivas dos preços de intervenção da manteiga e do leite em pó que atingem em 2008, 35% e 17.5%, respectivamente, sendo que as ajudas ao rendimento previstas para os produtores apenas compensam parcialmente a consequente redução, em 28%, do preço indicativo do leite na UE.

Atendendo às debilidades e especificidades do sector leiteiro nacional, como sejam a insuficiente dimensão das explorações e a elevada dependência da intervenção pública no mercado da manteiga, estas propostas podem ser altamente penalizantes e devem por isso merecer o nosso estudo e atenção. Sendo essencial sensibilizar os decisores políticos para os efeitos nefastos que a concretização destas propostas pode provocar, é também importante que todos os agentes do sector interiorizem os motivos fundamentais que orientam as tomadas de posição da Comissão. Com efeito, a crescente liberalização do comércio mundial, emanada das negociações da OMC, parece determinar as linhas mestras da reforma intercalar da PAC, enquanto que o dossiê do Alargamento, as restrições orçamentais e a denominada “opinião pública” europeia condicionam os restantes contornos do edifício político com que nos confrontamos presentemente.

Sendo indiscutível que o nosso país não se pode alhear deste cenário, que é difícil e complexo, resta-nos apesar de tudo alguma margem de manobra ao nível das políticas internas para o sector leiteiro, em cuja concepção deve estar a preocupação de vencer os desafios resultantes da crescente concorrência, quer a nível europeu como mundial, com que nos confrontaremos.

De forma simplista e necessariamente redutora, é urgente aumentar a competitividade do sector (através do incremento da dimensão média das explorações e das unidades industriais, da racionalização dos custos ao longo de toda a fileira, da melhor preparação técnica dos agentes envolvidos, da aposta na inovação,…) mantendo, contudo, elevados padrões de segurança alimentar, bem-estar animal e de defesa do meio ambiente. Trata-se de um equilíbrio extremamente difícil de obter e que por isso devia contar com o contributo de todas as Organizações do sector, para que através de um interacção permanente e estreita com as entidades oficias, sejam definidas as formas mais eficientes e adequadas para ultrapassar as dificuldades crescentes que se nos deparam. Apesar disso, estas questões parecem ter sido remetidas para segundo plano, ou mesmo esquecidas, face a uma situação que sendo muito grave e especialmente penalizante para os produtores de leite, é conjuntural e poderia ter sido evitada: a previsível ultrapassagem da quota leiteira nacional na campanha 2002/2003.

… À ULTRAPASSAGEM DA QUOTA LEITEIRA NACIONAL
Com efeito, passados mais de dez anos de aplicação do regime de quotas leiteiras em Portugal parecem persistir ineficiências na sua gestão oficial e agentes com responsabilidades no sector que não compreendem as suas vantagens, os seus condicionalismos, nem tão pouco as suas regras de aplicação, e que com as suas atitudes contaminam os processos de tomada de decisão dos produtores, colocando-os assim em situações muito difíceis. Nesta medida, parece-nos essencial clarificar e esclarecer determinados pontos relativos ao sistema de quotas, sendo que alguns deles deveriam estar há longo tempo formatados nas decisões básicas de gestão das explorações leiteiras.

1. FUNDAMENTOS DO REGIME DE QUOTAS
O sistema de quotas tem sido um instrumento fundamental na estabilização dos mercados, na promoção da restruturação do sector produtivo e na garantia de rendimentos estáveis aos Produtores. Sendo um factor limitativo da oferta de leite na UE, o sistema é particularmente relevante para as economias leiteiras menos competitivas, onde a produção leiteira é um elemento importante de estabilidade social e da vida económica de muitas regiões, e que não têm interesse específico na exportação. É, assim, com estranheza e perplexidade que se assiste no nosso país ao aparecimento de alguns anticorpos contra o regime de quotas, sendo alinhados argumentos coincidentes aos apresentados por Estados-membro da UE com sectores leiteiros muito competitivos, eficientes e voltados maioritariamente para a exportação.

Não existam dúvidas que a eventual eliminação das quotas na UE provocaria alterações profundas na distribuição regional da produção leiteira, acompanhadas de quedas acentuadas nos pagos preços à produção. Nesta medida é necessário enquadrar os investimentos em aquisição de quotas, que presentemente os produtores nacionais se vêem obrigados a realizar, pois são um mal menor se comparados aos efeitos muito nefastos que a citada abolição implicaria.

2. A EVOLUÇÃO DO SISTEMA DE QUOTAS NA UE
Parece evidente que apenas um terramoto político poderá impedir a manutenção do sistema de quotas na UE até 2008. Com efeito, os Estados-membro que defendem a manutenção do regime encontram-se em maioria, sendo que apenas o Reino Unido, a Alemanha, a Suécia, a Dinamarca e os Países Baixos advogam, a espaços, a sua abolição. O horizonte para a sua manutenção pode inclusive alargar-se para 2015, caso a proposta para o efeito da Comissão seja aprovada, o que acontecer terá lugar ainda durante o corrente ano.

Sendo assim, os produtores de leite devem contextualizar os seus investimentos em termos de aquisição de quota leiteira, num horizonte de 5 anos (senão mesmo de 10) disponível para o amortizar. Não é por isso correcto ridicularizar o comportamento previdente dos produtores que na campanha 1999/2000 procederam ao ajustamento das suas quotas leiteiras face à perspectiva de pagamento de multas, pois adquiriram um direito de produção plurianual, e estarão presentemente numa situação mais confortável do que os restantes que não o fizeram.

3. MECANISMO DE “RETENÇÃO”
Como condição essencial para a obtenção dos efeitos benéficos atrás citados, a administração do regime de quotas dispõe de uma medida dissuasiva da ultrapassagem da quota leiteira individual, a qual está corporizado no pagamento da imposição suplementar pelos produtores cuja produção exceda a respectiva quota, no valor de 0.3670 €/Litro. Trata-se de um mecanismo indesejável e que por isso deve ser evitado a todo o custo, através da contenção da produção à respectiva quota individual.

Face ao crescimento constante da produção de leite durante o ano 2002 cedo se consolidou a perspectiva de ultrapassagem da quota leiteira nacional no final da presente campanha que termina a 31 de Março. Perante esta conjuntura, os produtores de leite foram repetida e atempadamente alertados, pelas entidades oficiais, pelos compradores e pelas suas organizações, para evitarem as pesadas sanções resultantes da ultrapassagem da sua quota. No entanto, como os repetidos avisos não surtiram efeito, a maioria dos compradores, entre os quais as Federadas da FENALAC, decidiram, de forma responsável e no estrito cumprimento da lei e dentro das competências que lhes tão atribuídas, activar o mecanismo de retenção de uma fracção do pagamento do leite aos produtores em ultrapassagem da sua quota, a título de provisão para fazer face ao eventual pagamento da Imposição Suplementar no final da campanha.

Esta acção desencadeou mais uma torrente de desinformação, visando perverter os fundamentos da decisão e os seus objectivos. Trata-se, de facto, do último mecanismo disponível ao qual os compradores se viram forçados a recorrer, face ao falhanço de todos os restantes, e que tem por objectivo fundamental consciencializar os produtores para a necessidade de ajustar a produção à quota. Além disso, pretende-se diluir no tempo, e assim reduzir, o impacto que o eventual pagamento da Imposição Suplementar teria na gestão das explorações, caso fosse pago de uma só vez no final da campanha.

Estando reservado aos compradores o papel de recolherem os montantes das multas no final da campanha (precedendo à sua entrega ao INGA), e existindo mecanismos que atenuem o impacto das multas, estes devem ser accionados antes do final da campanha, enquanto algo ainda pode ser remediado. Após o dia 31 de Março nada mais há a fazer, senão efectuar o pagamento das multas, e os mesmos que agora criticam o denominado comportamento abusivo dos compradores seriam os primeiros a acusa-los de laxismo, caso não tivessem utilizado todos os instrumentos à sua disposição nesta matéria. No essencial, este mecanismo assemelha-se à retenção na fonte de uma percentagem do salário dos trabalhadores por conta de outrém, no âmbito do regime de IRS, não sendo neste caso conhecidas criticas de comportamento ou apropriação ilegítimos pelo Estado.

Resta também esclarecer que a retenção é calculada em função da ultrapassagem e não do pagamento, pelo que no limite é possível a retenção de um montante superior a metade do valor do pagamento do leite, nos casos em que a relação entre as entregas de leite e a quota é manifestamente desequilibrada. Sem desprezar os efeitos sociais relevantes, é indispensável referir que estas situações só são possíveis devido a um grave e sério descontrole das entregas de leite, que em alguns explorações duplicam a quota disponível ainda durante o terceiro trimestre da campanha. Definitivamente, é imprescindível introduzir nas explorações a noção de “gestão de quota”, no quadro global da sua administração, de forma a evitar situações que colocam em causa a manutenção das respectiva unidades produtivas.

Da parte dos Compradores não existe qualquer vantagem paralela nestas retenções e ainda menos no efectivo pagamento de multas, pois são motivo de destabilização no tecido produtivo e podem ameaçar a viabilidade de algumas explorações. Nesta matéria, não é também legítimo afirmar que os Compradores estão a obter lucros com “o leite fora de quota” pois todo o leite entregue é alvo de pagamento, não obstante essa verba possa posteriormente ter outro destino que não o produtor, no caso de haver lugar ao efectivo pagamento de multas. São contudo vias completamente distintas, cuja transparência está definida legalmente.

4. A “SOLUÇÃO” AUMENTO DA QUOTA NACIONAL
Nesta conjuntura difícil, o eventual aumento da quota leiteira nacional parece assumir-se como a resolução do problema. Com certeza que um aumento de quota poderia solucionar a questão conjuntural do pagamento de multas na campanha 2002/2003, mas poderia também causar desequilíbrios indesejáveis entre a oferta e a procura de leite que tenderiam a pressionar os preços à produção. Por outro lado, seria um adiamento da implementação de disciplina na produção de leite que inevitavelmente terá que se concretizar. Nesta matéria, parece no entanto essencial estender o regime da 73 mil toneladas correspondentes ao autoconsumo nos Açores, consolidando e clarificando esta situação, cuja gestão tem sido complexa e motivadora de equívocos desfavoráveis ao sector.

5. A GESTÃO OFICIAL DO REGIME DE QUOTAS
O desempenho do organismo oficial com responsabilidades em matéria de administração do sistema de quotas (INGA) não tem contribuído para a sua gestão eficiente, sendo frequentemente um factor de desorientação devido à lentidão na respostas aos processos que lhe são remetidos, quando tem por obrigação ser exactamente o oposto.

No que concerne ao acompanhamento da evolução da produção de leite e consequente divulgação da informação aos interessados (compradores e produtores) é ainda necessário aperfeiçoar e melhorar certos procedimentos, aumentando a sua transparência. No entanto, atendendo ao elevado montante previsto para a ultrapassagem da quota nacional no final da campanha 2002/2003 e aos repetidos alertas emitidos, este argumento não pode servir de desculpa para a ultrapassagem das quotas individuais. Relembre-se que, presentemente, os compradores estão obrigados à comunicação mensal das entregas ao INGA, algo que tem sido respeitado escrupulosamente pelos compradores da FENALAC, pelo que é incorrecto culpabilizá-los pelas falhas ainda existentes no acompanhamento quantitativo da produção de leite.

6. FINAL DA CAMPANHA
Restando menos de dois meses para o final da campanha é conveniente manter a contenção na produção de leite registada nas últimas semanas. Com efeito, todos os esforços no sentido de reduzir o montante previsto para a ultrapassagem da quota nacional são benéficos, pois contribuem para atenuar as sanções a que estarão sujeitos os produtores com excesso de produção.

Fernando Cardoso
Assessor da Direcção
FENALAC – Federação Nacional das Uniões de Cooperativas de Leite e Lacticínios

O Desafio Ambiental na Produção de leite – Fernando Cardoso


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