Henrique Pereira dos Santos

Odemira e as causas – Henrique Pereira dos Santos

censos 2021 concelho.jpg

Primeiro foi uma colega minha, por causa da discussão da seca e do regadio, a dizer-me para ir a Odemira, ver como o regadio era insustentável, inclusivamente do ponto de vista social.

Para o ilustrar, ligava para a reportagem da SIC ao protesto dos trabalhadores da Sudoberry.

Depois foi uma grande reportagem do Público que, infelizmente, se limita a entrevistar umas pessoas, evitando verificar factos.

Hoje, Ana Sá Lopes, num artigo ao seu estilo, conclui que a direita se impressiona muito com os eventuais atropelos de Eduardo Cabrita ao Estado de Direito, mas é insensível à exploração de mão-de-obra imigrante.

Odemira tornou-se, por via deste tipo de disparates, um exemplo que se apresenta sempre que se quer sinalizar a virtude própria, seja do ponto de vista ambiental, seja do ponto de vista social e uma demonstração dos malefícios do capitalismo e da captura do Estado pelos interesses económicos.

Saltemos por cima do facto de que boa parte destes virtuosos que acusam toda a gente de corrupta e vendida aos interesses, e de caminho  explicam que isso só é possível por o Estado estar na mão dos poderosos, apresentarem como solução para o problema o reforço do mesmo Estado que acham que está capturado pelos interesses.

Na reportagem do Público, em que a revolta dos trabalhadores é apresentada como sendo o resultado dos trabalhadores terem perdido o medo, os próprios trabalhadores explicam que no mês de Janeiro lhes pagaram menos 200 a 400 euros, com uma justificação qualquer sobre novas regras fiscais, e foi isso que foi a gota de água.

Aparentemente, nem a jornalista, nem o jornal, acharam útil ir ter com alguém que soubesse da fiscalidade que incide sobre o trabalho para verificar se esta hipótese, que a própria reportagem revela, pode ter alguma base factual ou é apenas uma história da carocinha da empresa Sudoberry.

A mesma jornalista, e depois Ana Sá Lopes cita como sendo uma coisa que lhe revolve o estômago, acha útil e credível o testemunho de um dos trabalhadores “É muito duro. Estamos a trabalhar num ambiente quente, dentro das estufas, e só podemos beber a água que trazemos de casa. Às vezes por mais de oito a dez horas … Se bebemos toda a que trazemos, pedimos, mas eles não nos dão, recusam”.

Há anos que sigo um princípio geral que me tem sido útil: se uma história parece mal contada, quase sempre é mesmo porque está mal contada.

Que há gente má em todo o lado, é um facto. Que há empresas e partes de empresas em que há gente má com excesso de poder, é um facto. Mas ainda assim, qualquer pessoa razoável e sem ter “uma causa” a defender, olha para este testemunho com alguma desconfiança.

Que o trabalho nas estufas é duríssimo e que é feito sob pressão constante para aumentar a produtividade, não tenho a menor dúvida.

Mas daí a aceitar, pelo seu valor facial o que é descrito, vai uma distância enorme a que a jornalista deveria dar atenção, porque provavelmente há maneiras de verificar o descrito: ouvindo mais pessoas (a empresa tem cerca de 500 trabalhadores) ou perguntando por que razão, sendo essas as condições de trabalho, o trabalhador em causa está há cinco anos na mesma empresa, num sector altamente deficitário de mão-de-obra, por exemplo.

Mas há mais que a jornalista poderia fazer, por exemplo, perguntado às entidades responsáveis pelas certificações GAP (good agricultural practices) ou RCB (antes British Retail Consortium, hoje Brand Reputation through Compliance), certificações essas que incluem critérios de respeito pelos trabalhadores (fora os outros ambientais e de sustentabilidade), como é possível que certifiquem uma empresa com práticas como as descritas.

Não estamos a falar de uma empresa que nasceu ontem, estamos a falar de uma empresa com mais de vinte anos e com a primeira das certificações referidas há quase vinte anos também. Nenhum dos auditores associados a estas certificações deu por uma prática laboral tão aberrante como esta?

Estou cada vez mais cansado deste jornalismo de causas, como aquele que fala da expansão da cultura do abacate no Algarve como um problema gravíssimo de consumo de água, quase nunca referindo que o consumo de água de uma produção de abacates é apenas 10% maior que a de um laranjal.

Ou sem, em algum momento, admitir que ganhando estes trabalhadores ordenados entre os 1500 euros e os 2 000 euros (a julgar pelas informações das reportagens, ganham 6,5 euros à hora, trabalham dez horas por dia, quase 30 dias por mês, o que daria um valor em torno dos dois mil euros), isto significa que entre impostos e taxas, o Estado fica com um valor próximo dos 40% do custo de cada trabalhador para a empresa.

Ou seja, se o Estado prescindisse de taxar o trabalho agrícola, estes ordenados poderiam subir automaticamente 40%.

Não, Ana Sá Lopes, não é o facto da direita se emocionar mais com a forma atribiliária de actuação de Cabrita que com a exploração dos trabalhadores imigrantes que é impressionante, é a infantilidade deste jornalismo na discussão de problemas difíceis (pois é, pagamos os alimentos a preços baixíssimos e depois queixamo-nos do facto dos trabalhadores do sector serem mal pagos, protestamos contra a plantação de abacates enquanto espalhamos o guacamole nas torradas por ser mais saudável que a manteiga, etc.) que contribui pouco para que possamos fazer melhor.

Já não falando num pequeno pormenor: se estes trabalhadores ali estão (e Odemira é dos poucos concelhos do país que aumentam a sua população nos últimos dez anos em que Portugal perde mais de 250 mil habitantes, ao mesmo tempo que aumenta em 40% a população estrangeira a viver em Portugal) é porque há riqueza a ser ali criada e porque estar ali representa uma grande melhoria da sua qualidade de vida, face à sua situação anterior.

O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.


Publicado

em

, ,

por

Etiquetas: