Oportunidades e oportunismos – Carlos Neves

Ao falarmos de crise, é costume lembrar uma citação de Jonh Kennedy segundo a qual “a palavra crise, em chinês, é composta por dois caracteres: um significa perigo e o outro oportunidade”. Nós últimos anos, o fim das quotas leiteiras foi apresentado aos produtores europeus como uma oportunidade face à procura de leite no mercado internacional. As quotas ainda não acabaram, mas efetivamente indústrias e produtores de alguns países do norte da Europa aproveitaram essa oportunidade nos últimos anos: produziram, exportaram e ganharam dinheiro, com preços do leite acima dos 40 cêntimos. Aqui no Sul, mais concretamente na Península Ibérica, apesar da nossa vizinha Espanha ser deficitária na produção face ao consumo e Portugal estar equilibrado, os oportunismos de importação superam as oportunidades de exportação.

Com efeito, estamos há 4 anos com preço do leite ao produtor abaixo da média comunitária. Em Julho passado, a diferença foi de 4 cêntimos. Agora o preço recuperou um cêntimo em Portugal e começou a cair na europa, em consequência do embargo russo, mas mesmo assim a evolução é diferente consoante o país. Na Holanda o preço caiu 5 cêntimos, de 43 para 38; A Holanda é um país fortemente exportador, logo dependente do mercado externo internacional que está em queda neste ano, mesmo assim as cooperativas holandesas conseguem pagar melhor aos produtores que as indústrias espanholas e portuguesas. Na Holanda, Dinamarca e Irlanda, 90% do leite é recolhido por cooperativas enquanto na Espanha essa recolha é de apenas 30%; Mas se em Portugal essa percentagem passa a 70%, porque não conseguimos em Portugal preço melhor que Espanha?

Na Espanha e, pontualmente, também em Portugal, começam a surgir sinais preocupantes para os próximos meses, com ameaças de abandono de recolha por parte de alguns compradores que até há pouco tempo prometiam mundos e fundos. Em alguns casos desconheço a justificação, noutras situações a justificação é absurda, caso do “Leite Rio” que ameaçou parar a recolha por causa do alto teor de lactose (?) ou da ultrapassagem da quota. Terão essas empresas previsão de quebra de vendas ou (mais provável) garantia de poder comprar leite importado a baixo preço, vindo direta ou indiretamente da Europa de Leste? Com a Rússia fechada, diz-se que a Polónia exporta para Alemanha, esta para França que injeta leite para Espanha e influencia Portugal. Resta saber se essas ameaças se concretizam ou são apenas truques para pressionar a revisão do preço em baixa aos produtores. Tudo o que disse para a indústria é válido para os grandes oportunismos da grande distribuição.

É nestes momentos de crise que poderemos ver a diferença entre os industriais oportunistas que abandonam os produtores na primeira oportunidade ou as empresas sólidas, com visão e com valores que assumem uma parceria responsável de partilha de lucro nas fases boas e partilha de esforço nos tempos difíceis.

Esta crise pode / deve ser também uma oportunidade para as cooperativas, Uniões de Cooperativas ou empresas detidas por cooperativas mostrarem que são diferentes. Por princípio, as cooperativas asseguram o escoamento de toda a produção dos associados, resta saber se conseguem pagar um preço que compense o custo de produção.

Esta é também uma oportunidade para reforçar o papel da rotulagem da origem dos produtos agrícolas. Em circunstâncias iguais ou aproximadas, os consumidores preferem produtos nacionais, porque sabem que o valor pago ficará na economia do país. Num inquérito recente no Reino Unido os consumidores mostraram-se dispostos a pagar um pouco mais pelo leite se tivessem a garantia que esse suplemento chegaria ao produtor.

Poderá ser necessário, como já foi no passado, apelar aos consumidores e denunciar os abusos da distribuição, mas isso apenas será possível com uma boa mobilização dos produtores e para que os produtores estejam disponíveis para serem mobilizados, é necessário que as cooperativas e empresas associadas sejam geridas de forma transparente e democrática, sem salários desproporcionados. Poderemos vencer as crises do fim das quotas se aproveitarmos as oportunidades e enfrentarmos os oportunismos.

Carlos Neves

PS – Aproveito esta oportunidade para agradecer publicamente ao Agroportal o espaço que me permitiu, ao longo dos últimos anos, partilhar a minha opinião com o mundo agrícola português, de forma livre, sem qualquer tipo de censura, condicionamento ou favor, bem como divulgar todos os comunicados das organizações agrícolas em que estive envolvido. Foi um serviço público que valorizou a agricultura e Portugal.


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