Quando comecei a trabalhar no setor agroalimentar, há quase 20 anos, nunca teria podido imaginar que a rotulagem dos géneros alimentícios pudesse vir a ter a importância de que se reveste hoje a nível normativo e comercial. Da mesma forma, dificilmente teria podido antever que alguns aspetos da rotulagem alimentar acabassem por gerar divisões tão profundas entre os atores da cadeia agroalimentar e os Estados Membros da União Europeia (UE).
Nas últimas duas décadas, o legislador europeu tem vindo a construir um quadro normativo complexo e abrangente para a rotulagem dos géneros alimentícios, privilegiando uma abordagem harmonizadora.
Neste contexto, o Regulamento (UE) n.º 1169/2011 é o texto jurídico de referência da matéria em apreço.
Apesar da ação harmonizadora, há em boa verdade áreas em que a normativa UE reconhece a possibilidade aos Estados membros de adotar, sob respeito de determinadas condições, medidas nacionais.
Isso é exatamente o caso da indicação do país de origem (ou do lugar de proveniência) nos rótulos alimentares, que, desde 2014, tem levado muitos países UE – incluindo Portugal e, mais recentemente, a Espanha – a estabelecer requisitos específicos para determinadas categorias de produtos (maioritariamente para o leite e o leite como ingrediente em produtos lácteos, mas também para tomate, arroz, pasta, a carne de coelho (sic) e a carne como ingrediente em alimentos processados).
Antes de mais, importa referir que a própria legislação UE requer obrigatoriamente a indicação do país de origem em relação a muitos alimentos (peixe, fruta e legumes, azeite, mel, carne bovina, suína, ovina, caprina e de aves de capoeira, entre outros).
Fora destes casos especificamente regulamentados pela lei, a normativa europeia estabelece o princípio geral segundo que a indicação do pais de origem é obrigatória sempre que a sua omissão possa ser enganosa para o consumidor, admitindo também que as empresas agroalimentares possam disponibilizar esta informação de forma voluntária. Além disso, a partir de 1 de abril de 2020, será obrigatória a indicação do país de origem do ingrediente primário de um alimento caso seja indicada a origem desse alimento e esta seja diferente da origem do ingrediente primário.
No caso específico do leite e do leite como ingrediente em produtos lácteos, a obrigatoriedade da indicação de origem tem sido excluída a nível europeu principalmente por causa dos custos que um tal requisito implicaria sobretudo no caso dos produtos sujeitos a processamentos mais complexos (manteiga, iogurte, queijos) e que inevitavelmente acabariam por se refletirem no preço final de venda.
Perante um quadro jurídico bastante completo, é legitimo questionar-se sobre as razões que motivaram muitos países europeus a adotar regras nacionais em matéria de origem. Embora muitas das medidas nacionais em apreço teriam sido elaboradas como resposta a exigências manifestadas por uma maioria de consumidores nacionais, parece-nos que os argumentos invocados pelos Estados Membros não tenham sido sempre sólidos e completamente convincentes, deixando a dúvida que se trate, na verdade, de medidas protecionistas com o único objetivo de valorizar a produção nacional.
Além disso, a coexistência entre as regras UE e as regras nacionais que têm sido adotadas nos últimos anos levanta muitas questões de ordem jurídica e política.
Em primeiro lugar, apesar de muitas destas medidas nacionais ter sido autorizadas pela Comissão Europeia antes da sua entrada em vigor, permanece aberta a questão se tais medidas deveriam ter sido previamente notificadas à Organização Mundial do Comercio de modo a excluir qualquer entrave às trocas comerciais entre a UE e os seus parceiros internacionais.
Em segundo lugar, numa ótica europeia, estas medidas acabam por contribuir para uma fragmentação regulamentar do mercado europeu indesejável e em contracorrente com a abordagem harmonizadora. O facto de alguns países (Itália e Roménia) terem introduzido normas nacionais sem sequer respeitar os procedimentos de consulta previstos a nível europeu constitui um precedente muito grave pela integridade do mercado europeu no que diz respeito à livre circulação dos produtos alimentares. Além disso, não nos podemos esquecer que perante o Tribunal de Justiça da UE pende neste momento um processo (Groupe Lactalis, C-485/18) em que está em questão, entre outros, exatamente a legitimidade das medidas nacionais em matéria de origem face à existência de uma base jurídica que atribua tal competência à UE (como no caso do leite e do leite como ingrediente em produtos lácteos).
De qualquer das formas, o que mais surpreende no contexto europeu é a necessidade política absoluta e imprescindível de estabelecer requisitos nacionais adicionais e obrigatórios em matéria de indicação da origem quando, como já referido, a legislação europeia permite que os operadores do setor agroalimentar forneçam essa informação de forma voluntária. Além disso, nada obstaria à realização de soluções mais ambiciosas e abrangentes de self-regulation impulsionadas pelos setores interessados a nível nacional ou até europeu.
Dada a sua relevância económica, o setor agroalimentar tem-nos habituado a disputas comerciais internacionais decorrentes da implementação de políticas alegadamente protecionistas. No entanto, a nível europeu, onde vigoram princípios fundamentais e fortemente integradores, como o princípio de cooperação leal entre os países do clube UE e do reconhecimento mútuo na área da livre circulação das mercadorias, a regulamentação da indicação da origem nos rótulos alimentares tem fomentado tensões institucionais sem precedentes. Embora não seja o caso português, nalguns contextos nacionais específicos trata-se, infelizmente, do resultado duma propaganda política de matriz nacional-populista e eurocética a que nem o setor agroalimentar parece estar imune.
Francesco Montanari
Doutorado em direito europeu pela Universidade de Bolonha, especialista em direito agroalimentar e Diretor dos assuntos jurídicos e regulamentares da Arcadia International, antena Ibérica, Lisboa