Os agricultores gauleses, o Acordo EU-Mercosur e Macron

image

Há alguns anos, num ajuntamento de indignados agricultores franceses contra as orientações da Política Agrícola Comum no respeitante à produção porcina, um dos seus mais empenhados líderes exclamou, de megafone em punho: « Protéger le porc, c`est nous protéger nous-mêmes»!

Porque o humor não era para ali convidado, apenas restou a frontalidade da atitude em face da inaceitável situação que demandava uma transformação radical das regras até então em vigor.

Este rememorar dessa exortação catalogável na categoria linguística « Je Suis», vem a propósito das recentes e gigantescas manifestações em várias localidades gaulesas e em Bruxelas – sede da União Europeia – contra a eventual aceitação pela França do texto (supostamente) final do Acordo EU-Mercosur: também aqui é patente a firmeza dos agricultores descontentes, e, sem surpresa, estão uma vez mais em liça os  recalcitrantes e reivindicativos agricultores franceses, reconhecidos mestres em matéria de protesto.

Com efeito, dever-se-á atentar no facto de estas suas últimas ações se registarem nas derradeiras horas de uma maratona de 25 anos de difíceis negociações entre as partes, já com a data da assinatura acertada para Dezembro de 2025, na presença, além do anfitrião Lula, dos presidentes da Argentina, do Uruguai e do Paraguai, e da Sra. Ursula von der Leyen a representar os 27 países-parceiros da União Europeia. E o inesperado sucedeu, na sequência da renúncia oficial francesa, transmitida à última-da-hora aos restantes parceiros envolvidos em todo o processo: a realização daquele solene e relevante ato teria de ser adiada a fim de se encontrar um texto mais conforme às exigências da citada aglomeração de agricultores.

Sempre que presencio estas demonstrações públicas de contestação, acompanho-as com particular atenção e apreensão, e isto em diferentes planos:

  1. em primeiro lugar, na qualidade de egoísta consumidor de indispensáveis bens alimentares;
  2. em segundo, como espetador de uma situação deveras impactante:
    a) por um lado, as impressionantes toneladas de víveres despejados em lugares havidos por estratégicos que, além disso, ainda nos recordam a nossa relação nem sempre pacífica e respeitadora com os nossos próprios restos diários;
    b) por outro, desta vez diante da pesada ´argumentação´ de um impressionante número de tratores a ocuparem múltiplas vias rodoviários, sinto-me como protagonista acidental de uma filmagem de um hipotético thriller norte-americano sobre o jogo do gato-e-rato entre as forças da ordem e os narcotraficantes;
    c) finalmente, estas grandiosas demonstrações- normalmente enquadradas pelas competentes autoridades policiais- convocam-me instintivamente para uma simples constatação: embora os agricultores nos providenciem os bens que a nossa subsistência enquanto seres humanos exige, a realidade agrícola em geral, para os citadinos que quase todos somos, é algo que ignoramos. O Supermercado é a nossa quinta, e as interrogações que nos assaltam situam-se exclusivamente ao nível da possível poupança comparativa na aquisição dos produtos. Vivemos paralelamente a esse mundo, e isso surpreende-me e choca-me.

Não obstante a gravidade da suspensão e adiamento da cerimónia causada pela nossa parceira e amiga França, ninguém contudo admite que este inoportuno transtorno venha efetivamente a resultar no impedimento da entrada em vigor, ainda ao longo de Janeiro, do necessário Acordo. O presidente brasileiro, aliás, logo fez saber que, ou bem a assinatura teria lugar neste primeiro mês de 2026, ou o Brasil não voltaria à mesa das negociações.

Este incidente suscita, obviamente, um indisfarçável mal-estar, não só no seio da EU, como no contexto interno, pelos danos de credibilidade já gerados em relação aos 27 no seu todo: a eventual renúncia europeia – assim seria entendida fora-de-portas – ao consenso penosamente conquistado ao longo de um quarto de século, significaria provavelmente o começo do fim de uma aventura de evidente sucesso, e de merecido prestígio internacional.

Trata-se assim de um crucial teste do algodão quanto à capacidade europeia de encontrar um chão e denominador comum que faça frente, quer à agressividade chinesa, quer à concorrência norte-americana. Que nos ponhamos de acordo, com a França a bordo, e não deixemos escapar por entre os dedos esta oportunidade única de nos mantermos à tona da água nos anos e décadas que aí vêm: este Acordo é-nos   indispensável para, enquanto espaço geográfico-político, virmos a redinamizar as nossas exportações e a parcialmente suprir as sabidas e sofridas dependências ou barreiras tarifárias noutros mercados.

Nesta etapa de previsível mudança de era e ordenamento planetário, não se afigura sensato nem inteligente atuarmos com o mero costume como guia de marcha, fingindo que afinal bastarão simples ajustamentos para darmos conta do recado neste competitivo universo.

A especificidade francesa, e os seus caprichos, foram sempre contemplados no desenhar e revisões de uma arquitetura comunitária no contexto agro- alimentar, com as reservas de alguns dos seus parceiros a obrigar à criação de soluções compensatórias e alternativas laboriosamente fabricadas por legiões de funcionários nas capitais e em Bruxelas, em reuniões de trabalho muitas vezes sem hora de encerramento. Coordenar 27 opiniões (também) neste âmbito é tarefa obviamente difícil, mas de milagre em milagre, tem-se conseguido avançar.

Mas há limites para a possibilidade de acomodamentos.

A espantosa conivência do presidente Macron – mesmo que provisória – com um grupo profissional que representa uma minoria do universo agrícola doméstico, reflete abundantemente a fragilidade política da sua pessoa e do sistema parlamentar francês atualmente em estado de coma avançado: o “europeísta” e “gaulista” Macron encontra-se, com efeito, no epicentro de um vulcão político-partidário cuspindo permanentemente uma generalizada e triste instabilidade que ele mesmo causou ao dissolver a Assembleia. Neste momento, e em sentido figurativo, a França parece ter preferido identificar-se com um qualquer barco à vela ao sabor dos ventos e marés, em vez de continuar a ser um barco-piloto que guia o navio Europa para que este não encalhe e faça com segurança a ancoragem no bom porto: não só é altamente preocupante a incapacidade parlamentar em aprovar o orçamento para 2026, como são assaz negativos os níveis da dívida e do défice.

Emmanuel está confuso. Muito confuso.  Mesmo se tal estado de alma não lhe faz perder o apetite – nem o jeito – para estar ativamente presente na cena internacional em cenários eminentemente políticos: aí, vai escondendo com brilho, tanto quanto pode, a sua tremenda impopularidade chez lui. É preciso, agora, demonstrar que para além do relativo peso atingido nesses outros foros, é igualmente competente para pôr os pontos nos iis na questão do Acordo da EU com o Mercosur:  diante da voragem de Xi Jinping e de Donald Trump, a França não pode estar ausente nesta fase de transição para uma recomposta «família»  internacional.

A terminar, e reforçando a precedente nota de esperança, permito-me ir mais além nas minhas expetativas: não só acredito que o Acordo EU-Mercosur virá a ser firmado, como aposto que os benefícios derivados do novo mercado comum para cerca de 700 milhões de consumidores criará, por osmose, uma renovada atmosfera de otimismo da qual a Europa tem estado arredada há demasiado tempo.

Continue a ler este artigo no Observador.


Publicado

em

,

por

Etiquetas: