Susana Brígido

Os Deuses Florestais devem estar loucos! – Susana Brígido

A 30 de junho de 2020, foi publicado o Decreto-Lei n.º 31/2020, de 30 de junho, que “institui a declaração prévia obrigatória de corte, corte extraordinário, desbaste ou arranque de árvores de espécies florestais, que se destinem à comercialização e ao autoconsumo para a transformação industrial, e a comunicação das operações realizadas ao longo da cadeia de abastecimento que garantem a rastreabilidade do material lenhoso destinado à indústria de 1ª transformação e à exportação”, com entrada em vigor 180 dias depois da sua publicação, revogando o Decreto-Lei n.º 174/88, de 17 de maio.

Enquadrando esta legislação, o manifesto de corte criado na década de 80 surgiu pela necessidade da autoridade florestal, nessa época, necessitar de analisar periodicamente a exploração dos povoamentos em Portugal e, para tal, o dito manifesto indicava a propriedade e o volume extraído de cada propriedade e tinha de ser enviado até 30 dias após o corte. Décadas passadas e por manifesta falta de capacidade do ICNF em analisar a informação, esta legislação, como muitas outras em Portugal, deixou de ser fiscalizada e avaliada ao nível do seu grau de implementação e exequibilidade, e foi esquecida pela maioria dos operadores.

Com a entrada em vigor em 2013 do Regulamento Europeu do Comércio da Madeira (Regulamento (UE) n.º 995/2010), Portugal justificou-se perante a União Europeia que controlava todo o material que “saía” das florestas nacionais devido ao dito Manifesto de corte, legislação da década de 80, e que praticamente ninguém cumpria, à exceção da maioria das áreas com gestão florestal certificada. E por isso, a partir de 2013, começou “a mexer” novamente o pedido de manifesto pelo ICNF.

Sendo, sem dúvida, o sistema previsto no Decreto-Lei n.º 174/88, de 17 de maio, arcaico e sem qualquer utilidade para a recolha e tratamento de informação, surgiu (e bem!) o Decreto de Lei  31/2020 que prevê que este manifesto, à semelhança de outros produtos (da pinha e da cortiça, por exemplo), fosse realizado através de uma plataforma para o efeito – SiCorte.

Até aqui tudo bem…não fosse o facto da incapacidade de o colocar em vigor em tempo útil e durante quase dois meses (desde o início de Janeiro) haver um vazio legal. Ou seja, os operadores (empresas de comercialização e exploração florestal) não podiam cumprir a legislação devido à inexistência da plataforma e não existia nenhum registo transitório disponível. No entanto, continuavam a ser mandados parar pela GNR e a terem de apresentar o dito manifesto ao abrigo da legislação em vigor!

Não ficando por aqui, no passado fim de semana, dia 21 de fevereiro, foi publicado um Manifesto transitório, que é um ficheiro Excel. No entanto, é um ficheiro cuja formatação não permite imprimir corretamente; é um ficheiro com várias folhas de preenchimento, sendo algumas optativas e outras que só se aplicam em alguns casos, e não existe qualquer informação sobre prazos de entrega do dito manifesto.

Esta questão de prazos tem grande relevância, pois na anterior legislação eram referidos 30 dias após o corte, enquanto este manifesto, e como a própria descrição do enquadramento legal deste decreto lei indica, “institui a declaração prévia obrigatória”. Ou seja, se é “prévia”, deveria enviar-se antes de qualquer corte, mas alguns dos dados pedidos no manifesto implicam o preenchimento com informações sobre a rastreabilidade da madeira, indicando, por exemplo, as quantidades entregues por cliente. A “cereja em cima do bolo” é o facto deste manifesto ter efeitos retroativos desde o início do ano.

Como percebem, o caos está instalado!

Este é um setor composto, maioritariamente, por empresas de pequena dimensão, sem qualquer apoio de secretariado, vocacionados e especializados em trabalhos de campo, muitos dos gerentes com idade avançada, com diversas limitações digitais, principalmente ao nível de gestão e de preenchimento de ficheiros que podem ser considerados “básicos” para utilizadores normais das ferramentas do Office.

Pelo que considero que este mecanismo só pode ter sido desenhado por idealistas que não conhecem a realidade do tecido empresarial florestal ao nível das empresas de exploração e comercialização de madeira!

O ICNF deveria estar preocupado em assegurar que estas empresas sejam boas no que fazem e assegurar que o sistema de reporte seja acessível ao tipo de tecido empresarial florestal existente, que sustenta uma importante quantidade de postos de trabalhos diretos e indiretos do setor, que gera uma importante parte da economia e dinâmica rural.

Quando analisei o ficheiro disponibilizado só me lembrei da expressão “Os Deuses devem estar loucos!”. Pois isto só pode vir de uma instituição que está “alheada” da realidade, mas que, no entanto, tem sob a sua tutela a floresta, os recursos florestais e os seus agentes. Uma instituição que é responsável pelo desenvolvimento social, económico e ambiental de mais de um terço do território nacional.

Este tipo de postura e de ações é algo que me deixa muito preocupada!

Como podemos ter um setor florestal competitivo, inovador e dinâmico quando o setor público insiste em “entupir-nos” de instrumentos desajustados, que só trazem ineficiências e incumprimentos legais recorrentes, apenas e só porque estão  desfasados e desadequados à realidade?

É urgente que esta legislação seja suspensa, mantendo-se em vigor o antigo Decreto-Lei até que este mecanismo esteja afinado, até que todos os agentes tenham formação e informação para o correto cumprimento legal que se exige.

Vamos todos trabalhar por um setor eficiente pois, num mundo global, em que a concorrência é feroz, urge a necessidade da profissionalização com base em políticas e mecanismos claros, que tragam valorização e transparência, garantindo o envolvimento e participação de todas as partes interessadas.

Por um território português sustentável e resiliente, só possível com uma gestão ativa da floresta!

Susana Brígido

Sócia-gerente da 2BForest

Responsável por um Grupo de Cadeia de Custódia com 40 empresas de exploração e Comercialização de Produtos Florestais

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