“A maneira como têm sido enfrentados pelos sectores responsáveis do Ministério de Agricultura e Pescas os problemas dos fogos florestais … convence-nos de que o País está a ser governado efectivamente por bandos de contabilistas ou econometristas da “macroeconomia”, completamente ignorantes da Economia Política (como arte integradora de todas as microeconomias de um país – que mostram desconhecer por completo)”. Ilídio de Araújo, em 2005, do livro “Arquitectura Paisagista ou “A organização do espaço” nas paisagens”, página 71.
Como em qualquer grupo profissional, há variações relevantes de pontos de vista, e na minha profissão de arquitecto paisagista, mesmo no primeiro grupo de profissionais, conhecidos pela sua coesão, há variações muito relevantes de discurso e, em especial, do discurso público.
Note-se que Ilídio de Araújo põe a tónica nos sistemas agrícolas e florestais como condicionantes da estruturação das paisagens (di-lo explicitamente no parágrafo que antecede este, no livro), no que representa uma visão diametralmente oposta à de muitos outros paisagistas que pretendem condicionar os sistemas agrícolas e florestais como forma de estruturar paisagens.
Parece-me um bom ponto de partida para escrever sobre o cada vez mais presente problema da estruturação fundiária como condição prévia à gestão do fogo, problema sobre o qual tenho uma posição mais que ultra-minoritária, na medida em que mesmo nas pessoas cujas opiniões sigo habitualmente em matéria de fogos, verifico que há divergência neste ponto (o outro é o das ignições, sobre as quais talvez venha a fazer um post).
Este ano constatei que a discussão sobre fogos continua a sua melhoria, são já raros os discursos trogloditas sobre incendiários (é verdade que este ano as coisas correram melhor que o esperado, em parte porque se exagerou no esperado, desvalorizando a relativa amenidade do vento, parece-me) e são muitos e variados os discursos mais estruturados sobre fogos e gestão da paisagem.
Estou tentado a dizer que o discurso da valorização da gestão florestal foi este ano mais forte, mais audível e mais consensual que em anos anteriores, o que acho muito bom.
O problema é a forma como estamos, mais uma vez, a desviar a discussão para sintomas, esquecendo a doença.
Um bom exemplo é o facto de do excelente artigo de Luís Aguiar-Conraria no Expresso desta semana – fica-me mal dizer isto, eu sei, porque o artigo tem umas referências muito simpáticas ao que tenho escrito – o Expresso ter escolhido destacar “O rastreamento das propriedades rurais e legislação que facilite partilhas de heranças indivisas é crucial”. Sim, isso está escrito no artigo, mas é um parágrafo final de reforço da ideia de olhar para a economia associada à gestão do fogo, em que Luis Aguiar-Conraria diz que para haver valor económico é preciso que os direitos de propriedade estejam bem definidos, está muito longe de ser o essencial do artigo.
Da mesma forma, há dias, o Público destacava da entrevista de Tiago Oliveira a sua insistência na necessidade de alterar o direito sucessório.
E António Costa quando resolveu falar da questão da valorização da gestão florestal, imediatamente se meteu pelo atalho do registo de propriedades e afins.
Não vale a pena citar pela enésima vez o presidente de junta que diz que quando quer saber de quem é um terreno põe uma placa a dizer vende-se, com o seu número de telefone, e diz que nunca passou mais de uma semana que não recebesse um telefonema a perguntar a que propósito estava a vender um terreno que não era dele.
Vamos admitir que há de facto um problema de competitividade do sector ligado à dimensão da propriedade.
A ser assim, o normal seria ter as propriedades bem geridas, desde que tivessem a dimensão adequada.
Não é o que se verifica, em que há milhares de médias e grandes propriedades não geridas ou geridas com muito baixa intensidade, numa lógica mais extractiva que de verdadeira gestão.
Acresce que a maior parte do Valor Acrescentado Bruto Florestal do país vem das zonas de minifundio. Não porque exista qualquer relação entre pequena propriedade e maior rentabilidade, mas apenas porque existe uma relação estreita entre produtividade e dimensão média das propriedades.
Ainda que estes dois argumentos não sejam verdadeiros, o facto é que mexer no direito sucessório ou entrar em processos de reestruturação fundiária, como condição prévia de competitividade da gestão, ainda que esteja certo – eu acho que não está, independentemente de haver alguns modelos rentáveis que só são viáveis em propriedades com alguma dimensão, mas também com outras características que são condição sine qua non para esses modelos serm exequíveis e competitivos – vai demorar tempos infindos a dar qualquer resultado na gestão dos combustíveis finos.
No fundo, pretende-se que seja o Estado a impulsionar um processo de agregação da propriedade quando as pessoas não estão interessadas no assunto. É exactamente o mesmo tipo de equívoco que fez com que o Estado andasse anos em programas de reabilitação dos centros históricos das cidades, e o problema se tenha alterado muitíssimo assim que o alojamento local passou a ser uma actividade com interesse para os proprietários.
O facto de não haver um mercado de terreno digno desse nome para as terras marginais, ao ponto de haver muitas terras de que os donos não conhecem os limites, prende-se com o problema da criação de valor: se não há criação de valor que pague a gestão e remunere o trabalho e o capital, não há interesse em transações de propriedade – o que é agravado pelos custos de transação que o Estado impõe nestas transações e de que poderia prescindir de imediato, sem grandes efeitos negativos.
Por tudo isto, vou insistir: precisamos de pagar já a gestão de combustíveis finos, sem estar à espera do grandes programas de reestruturação fundiária que, tarde ou cedo, serão anunciados.
Felizmente já houve quem fizesse sugestões para tornar mais simples ainda esse pagamento, envolvendo as organizações de produtores florestais e, quando tiver tempo, vou actualizar as propostas que tenho feito nesse sentido.
Como diria Ilídio de Araújo, são as condicionantes destes sistemas que estruturam paisagens, não é o condicionamento destes sistemas que estrutura paisagens.
O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.