À medida que a experiência e a formação que tive o privilégio de viver e de receber ao longo de toda a minha vida profissional, se começou a encaixar, de forma a proporcionar-me, não só uma série de fortes convicções mas também um pensamento global sobre a agricultura portuguesa, quer em termos absolutos, quer em termos da sua inserção na Europa e no mundo, acredito, cada vez mais e com cada vez mais segurança:
– que poderíamos ter um sector agrícola, florestal e agro-industrial, com um nível de desenvolvimento muito superior ao actual;
– que poderíamos (em valor) ser auto-suficientes em produtos alimentares de base agrícola e grandes exportadores líquidos de produtos florestais;
– que poderíamos ter uma agricultura desenvolvida e sustentável, onde desse gosto trabalhar, quer como produtor, quer como técnico e/ou investigador.
Digo-o com sinceridade mas também com consciência de que os nossos recursos naturais, particularmente o solo e o clima, têm imensas limitações para as actividades agrícolas, especialmente se comparados com os dos países com os quais concorremos mais directamente.
Nunca considerei a Politica Agrícola Comum um factor limitativo, e muito menos a “causadora da destruição da nossa agricultura”, como o fazem muitos dos nossos compatriotas, distorcendo a realidade que, em regra, não conhecem.
Contudo, agora, quando tantos portugueses, em tão diferentes níveis de responsabilidade pública, se pronunciam sobre o contributo possível que a agricultura pode dar para atenuar a crise em que vivemos, quer como geradora de riqueza a curto prazo, criadora de emprego, ou redutora da nossa dependência externa, parece-me indispensável referir os pressupostos, que considero básicos, para que essa possibilidade se concretize.
Não o fazer, isto é, não associar ao discurso das potencialidades e das possibilidades, a reserva dos pressupostos, é favorecer o risco de mais uma frustração colectiva.
De facto, a nossa agricultura só se desenvolverá, de acordo com o desejo generalizado dos portugueses, se, e quando, além dos preços e dos custos que mais preocupam os agricultores, pelo menos dois pressupostos se concretizarem:
O pressuposto do investimento na modernização das unidades produtivas, que tem que ser intenso, permanente, facilitado e esclarecido;
O pressuposto da aquisição de capacidade técnica (conhecimento), por parte dos agentes económicos com ligações ao sector, o que implica que, de uma vez por todas, de uma forma responsável, racional, rigorosa e não perdulária, se aposte na investigação, no ensino e na transmissão de conhecimento até aos seus utilizadores finais.
A verdade é que, infelizmente, quer o primeiro, quer o segundo desses pressupostos parecem longe de se concretizar.
Independentemente dos méritos e dos atributos, da actual Ministra da Agricultura, que parecem ser muitos, as verbas de que dispõe para gerir a acção do Ministério são mais determinados pela crise do que pela esperança de desenvolver a agricultura.
A Ministra pode pensar em não devolver dinheiro a Bruxelas e pode consegui-lo. Dir-se-á que já não será mau se tal acontecer. Pode até conseguir evitar as brutais multas por incumprimentos vários que, quando tomou posse, toldavam o futuro agrícola nacional. Também já não será mau.
Quanto ao resto, como diz o ditado, não poderá fazer omeletas sem ovos.
Vejamos então porquê, de uma forma mais detalhada.
A agricultura tem evoluído a uma velocidade sem paralelo na história da humanidade.
Essa evolução é baseada na ciência e na tecnologia e exige assimilação, organização e investimento permanente, por parte dos seus agentes.
Malgrado os fracos recursos naturais de que dispomos, e que muitos, por desconhecimento, julgam melhores do que eles na realidade são, estamos hoje a concorrer directamente, em mercado aberto, quer na União Europeia, quer fora dela, por via da globalização, da qual não nos podemos escapar.
Na disputa dos mercados, as exigências são enormes. Em novas técnicas, novos equipamentos e novos factores de produção, que não estão ao alcance de agricultores descapitalizados, mal informados, envelhecidos e sem condições de acesso aos investimentos produtivos.
Apesar dos nossos handicaps, naturais e estruturais, o que tem permitido que os agricultores e a agro-indústria nacional se tenham aguentado nas últimas décadas sem desaparecer, e até, em alguns casos, se tenham desenvolvido, tem sido o apoio público aos investimentos, fortemente baseado nos apoios estruturais comunitários, dos quais temos vindo amplamente a beneficiar.
É por isso, e só por isso, que, ao contrário da percepção negativa que os portugueses têm da sua agricultura, apesar do aumento da população e sobretudo das capitações do consumo terem crescido exponencialmente (nos últimos vinte anos aumentámos 63% o consumo per capita de hortícolas, 41% de carne e 24% de leite) alcançámos a autosuficiência no sector do azeite, do leite, do arroz e de alguns outros sectores pecuários (aves e ovos), somos exportadores líquidos de produtos hortícolas e horto-industriais (frescos e transformados) e de vinho, além de também o sermos em todo o sector florestal, incluindo na cortiça.
Pela mesma razão, temos hoje uma moderna rede de matadouros, de lagares de azeite, de adegas, de unidades de tratamento e de transformação de leite, de estações fruteiras e de produtos hortícolas, de infra-estruturas de conservação e de armazenagem e de muitas outras em todas as fileiras produtivas nacionais, com destaque para os regadios públicos e privados, cuja dimensão e qualidade pouco tem a ver com as de que dispúnhamos antes da adesão à CEE.
Para uma agricultura “desaparecida” e “destruída”, como muitos sentenciam, não perece mau!
Aliás, não conheço nenhuma unidade de produção moderna (agrícola e agro-industrial) que não tenha sido feita, ou modernizada, sem um decisivo apoio público e maioritariamente europeu.
Para uma PAC responsável pela nossa “ruína agrícola”, também não parece mau!
Estas estruturas, não só se comparam com o que há de melhor na Europa, como permitem aos consumidores portugueses, quanto à qualidade dos produtos que consomem, uma segurança de nível igual ao verificado nos países mais desenvolvidos.
Infelizmente, temos colectivamente a tendência, errada, de seguir os inúmeros comentadores e alguns políticos que, sem conhecerem a realidade, insistem em dizer que a agricultura foi destruída. Para ilustrar o que dizem, recorrem à ideia de abandono, chegando-se a dizer que “há em Portugal 3 milhões de hectares de terras agrícolas por cultivar” (tal como li na comunicação social há uns meses atrás). Mais um monumental disparate, comprovando além do mais, que o rigor se dá mal com o nosso ADN colectivo.
Ninguém diz que a área abandonada são 125 000 ha (cerca de 3% da nossa superfície agrícola utilizada), tal como o determinou o INE no mais recente recenseamento, em 2009. Não é pouco, é pena que assim seja, e deve ser fortemente contrariado, mas também é pena que tenhamos tanta tendência para o exagero e para o masoquismo.
Esses comentadores e alguns políticos a que me referia, certamente para tentarem comprovar os seus errados pontos de vista, recorrem ao disparate de dizer, sem pensarem ou fazerem contas, que a nossa auto-suficiência alimentar de base agrícola é de 30%, quando nunca foi inferior a 70%! Houve alguém que cometeu o erro de o dizer e, como de costume, muitos outros mais não fazem do que repeti-lo (e é tão simples consultar as estatísticas!).
Tornou-se de tal forma banal ler e ouvir este tipo de afirmações que até se estranha que alguém diga o contrário, mesmo que o faça apoiado em números e em factos concretos.
Um dos benefícios que Portugal retira da PAC é o que resulta do facto do estado português gastar actualmente, do seu orçamento, com o apoio à agricultura, um montante anual irrisório, quando comparado com o que gastava antes da adesão à CEE.
De facto, só em subsídios ao leite, à carne, ao pão, às oleaginosas, às rações e aos adubos, sem contar com o apoio aos investimentos, Portugal gastava nessa altura, a preços correntes, mais do dobro da totalidade dos gastos directos actuais com o conjunto do sector (incluindo agora também as florestas e a agro-indústria).
Se esta comparação fosse feita, como deveria, calculando esses montantes a preços reais, a diferença não seria de duas vezes mas sim de seis ou sete vezes mais.
É, por isso, incompreensível, a dificuldade que o país tem revelado para considerar no seu orçamento as verbas necessárias para, associadas ás verbas europeias, permitirem concretizar o que deveria ser um desígnio nacional: o do desenvolvimento da agricultura.
De facto, o Plano de Investimentos do Estado para a agricultura, tem sido, nos últimos anos, fortemente limitado e muitíssimo inferir ao que foi no passado, mesmo no passado recente, uma vez que é inferior a um terço do que foi entre 2002 e 2004.
Note-se aliás, que o dinheiro que o Estado gasta na componente pública nacional dos apoios a projectos de investimento produtivo nas explorações agrícolas – qualquer coisa como, no máximo, 10%1 do total investido, resultante de 25% de comparticipação nacional no subsidio público máximo de 40% – tem retorno através da cobrança de impostos (sobretudo IVA, IRC/IRS e TSU).
O que se tem dito pouco é da dimensão desse retorno.
Com base na análise de inúmeros casos de projectos de investimento concretos, de natureza diversa e em vários sectores, estamos em condições de afirmar e de provar:
1. Que o Estado recebe sempre mais e, frequentemente muitíssimo mais, do que aquilo que paga;
2. Que recebe uma parte antes mesmo de pagar qualquer importância;
3. Que a diferença, positiva, variando em função do tipo e da rentabilidade de cada projecto, pode variar de cinco vezes a dez vezes mais se tomarmos em consideração a vida útil dos projectos.
Finalmente, podemos afirmar que, sem apoio público, raros são os agricultores ou empresas que arriscam fazer investimentos de modernização na medida em que, de uma forma geral, a rentabilidade dos projectos, está fortemente dependente desses apoios e os elevados montantes necessários, são muito pouco acessíveis aos agricultores de pequena e média dimensão.
A prova foi feita durante o longo e negro período, de 2005 a 2009, em que esses apoios não estiveram disponíveis e em que os poucos que se arriscaram foram sobretudo grandes empresas e multinacionais, com substancias meios próprios e acesso ao crédito, uma vez que só bastante mais tarde receberam os respectivos subsídios.
O número de projectos apresentados e aprovados, nos três anos em que o PRODER deu sinais tímidos de vida (de 2009 e 2011), parecendo alto, representa apenas uma pequena fracção do que anualmente acontecia, quer antes da entrada de Portugal na CEE, quer depois, em que a média anual dos projectos de modernização apoiados, ultrapassava quase sempre a dezena de milhar (tendo chegado, de 2002 a 2005 a mais de 16 000 por ano).
Se nada mudar, mais uma vez se dirá que não podemos contar com a agricultura e que o que comemos vem sobretudo do estrangeiro, por incapacidade dos nossos agricultores e da nossa agricultura que está destruída e abandonada.
Se tal vier a acontecer, o que ainda tenho esperanças que não venha a ser o caso, será o resultado de uma insensibilidade urbana dominante, que se mostrará, incapaz de compreender a natureza e a importância do apoio público à agricultura, quer pelos valores em causa, quer pelas ligações aos apoios comunitários, quer pelos efeitos sobre a produção, sobre os reequilíbrios regionais, sobre o défice comercial com o exterior, quer ainda pelo facto de, por via fiscal, esses apoios se tornarem positivos para os cofres do estado.
Além disso, as dificuldades no apoio público à agricultura, pouco ou nada terão a ver com a contenção da despesa pública noutros sectores e será pouco razoável argumentar-se com os cortes, na saúde, na educação, ou na segurança, até porque se a agricultura e outros sectores produtivos se não desenvolverem, mais cortes serão necessários no futuro, nessas áreas tão sensíveis para a vida dos portugueses.
Quanto ao conhecimento, o segundo dos pressupostos que mencionei, ainda que possa ser controverso, considero que é nessa área, a par com os seus fracos recursos naturais e as dificuldades de financiamento, que Portugal tem hoje as maiores desvantagens comparativas para poder enfrentar, em condições mínimas de igualdade, os seus concorrentes, no mercado interno e externo.
De facto, o significativo enfraquecimento da acção concreta desenvolvida nesta área pelos organismos do Estado no sector agrícola, florestal e agro-industrial, não foi suficientemente compensado pelo seu alargamento nas universidades e institutos politécnicos, nem pelo aumento da participação de investigadores portugueses em projectos financiados pela UE, que, apesar de interessante e com aspectos positivos (em alguns casos responsável por úteis transferências de tecnologia), tem-se frequentemente desviado de interesse prático em termos nacionais.
Esta circunstância, de carência de conhecimento prático, adaptado às nossas necessidades específicas, não é, evidentemente, generalizada. Há, entre nós, excepções pontuais e casos de sucesso e até de excelência, que deveriam ser estudados para melhor se compreender as razões da sua existência.
As carências não derivam exclusivamente da falta de produção científica, mas também de evidentes fragilidades no ensino agrário no seu conjunto e, obviamente, na ineficácia da transmissão do conhecimento até aos seus utilizadores finais, sempre que ele está disponível na origem. Isso acontece, quer pela falta de estruturas de intermediação, quer por múltiplas outras razões, até culturais, que afastam uma grande parte dos agricultores do conhecimento técnico e científico.
Infelizmente, em matéria de conhecimento técnico/cientifico incorporado em práticas agrícolas, florestais e agro-industriais, Portugal tem-se vindo a afastar de muitos países no âmbito da UE, onde se procura activamente, modernizar, inovar e encontrar os 8 caminhos de uma nova agricultura, competitiva e sustentável, que dê resposta aos grandes desafios, quer do nosso tempo, quer daqueles que não estando ainda completamente presentes, já produzem sinais de grande aproximação, como acontece, por exemplo, com as alterações climáticas.
A única maneira de desenvolver a nossa agricultura e tornar sustentável o seu desenvolvimento é fazer acompanhar o reforço do investimento produtivo, já mencionado, por um grande esforço de aquisição e de transmissão de conhecimentos, articulando o ensino com a investigação e com a formação profissional e mobilizando os meios humanos e materiais, nestas três frentes, no âmbito de um projecto comum, com benefícios públicos demonstráveis, com prioridades bem definidas e no qual as maioria dos portugueses se possam rever e acreditar.
Se as condições não forem criadas, com todo o Governo, qualquer que ele seja, a acreditar e a fazer acreditar, que isso é possível e desejável, de muito pouco servirá o esforço de alguns agricultores e as boas intenções do Ministério da Agricultura.
Armando Sevinate Pinto
Agrónomo
1 E desde há algum tempo, apenas 6%, resultante do facto da componente europeia ter subido de 75% para 85%.
Agricultura: Economia, Economistas e Comentadores – Armando Sevinate Pinto