Henrique Pereira dos Santos

Paisagens e pessoas – Henrique Pereira dos Santos

O título deste post resulta da conversa que o José Miguel Cardoso Pereira e eu tivemos um dias destas na RTP3, de que gostei bastante e me pareceu muito interessante (ver aqui, a partir do minuto 49).

Mas acho que surgiu espontaneamente a partir da memória deste blog, que em tempos frequentava para ler os posts do Carlos Aguiar (hoje o blog parece-me mais centrado nas plantas que nas relações entre as plantas e as pessoas).

E também devo ter sido influenciado pelas minhas leituras recentes do que escreveu o Professor Francisco Caldeira Cabral (pediram-me uma coisa que não vou fazer sobre os 80 anos do ensino de arquitectura paisagista, mas desse pedido ficou-me uma vontade difusa de escrever um ensaio sobre o Professor, cujo o título, em princípio, será “Caldeira Cabral e a síntese da amónia”), e Ilídio de Araújo (por causa do livro que Fernando Pessoa e José Carlos Marques fizeram sair, com base no que o próprio Ilídio de Araújo preparou com o que me parece ser o seu testamento intelectual, em que trabalhou praticamente até ao dia em que morreu).

A conversa com o Zé Miguel pareceu-me muito interessante por espelhar uma fractura intelectual (o Zé Miguel diria, como disse na conversa, que não concorda comigo na dimensão dessa fractura, admitindo sequer que estaria de acordo na existência dessa fractura) clássica na discussão sobre paisagens e os processos que lhe são inerentes (como o fogo, neste caso, mas todos os outros): o ponto de vista construído a partir das paisagens que servem as pessoas versus o ponto de vista construído a partir das pessoas que gerem paisagens.

Por estranho que possa parecer, o “partido” da paisagem como referencial foi tomado pelo Zé Miguel, que é florestal, e o “partido” das pessoas como referencial foi tomado  por mim, que sou paisagista. Mato já os comentários sobre a artificialidade desta fractura dizendo que os dois sabemos muito bem que há uma ampla sobreposição entre os dois pontos de vista.

É menos estranho que o “partido” das pessoas seja tomado por paisagistas, conhecendo a história e os fundamentos filosóficos que estão na base da arquitectura paisagista, incluindo a existência dessa fractura dentro da profissão, com um grupo em que Caldeira Cabral e Ilídio de Araújo se incluem, mais perto da ideia do homem como referencial das paisagens que se constroem, e outro grupo, em que se inclui Ribeiro Telles, por exemplo, com alguma têndencia para escrever sobre paisagens em si, com pessoas, bem entendido, mas com menos atenção ao que fazem e ao que precisam essas pessoas para que as paisagens sejam estruturadas assim ou assado.

Volto a frisar, todos eles têm o homem como centro, estão por isso muito distantes das correntes filosóficas ecocêntricas da “deep ecology”, trata-se apenas de uma questão de grau que me parece que é muito claro na conversa que o Zé Miguel e eu tivemos.

O Zé Miguel classifica a sua abordagem como tecnocrática, parte do estudo dos “hábitos do fogo” (grande expressão do Zé Miguel) para identificar territórios com características diferentes e, a partir daí, defende políticas diferenciadas em função dos territórios.

Eu classifiquei a minha abordagem como mais social, centrada nas pessoas que existem – actual e potencialmente – para identificar as razões pelas quais actividades socialmente úteis não acontecem e, a partir daí, defender políticas que pretendem potenciar a actividade das pessoas que é socialmente útil e que os mercados não remuneram convenientemente.

Os dois reconhecemos a importância dos dois pontos de vista, e na verdade este post é apenas para constatar que ficou mais claro para mim o risco “conceptual” (hoje deu-me para a intelectualice) das políticas centradas na paisagem (bem sei, bem sei, onde escrevi paisagem neste post, a esmagadora maioria das pessoas que trabalham no assunto escreveriam território): o risco de estarmos a desenhar políticas para fantasmas, para ausentes, políticas desenhadas sem se saber quem as vai executar.

Há anos, Miguel Freitas, então Secretário de Estado das Florestas, resolveu (e bem) desenhar um programa de apoio à pastorícia enquanto instrumento de gestão do fogo. Depois de ter lançado um primeiro concurso sobre o assunto, pediu-me para ir conversar com o seu gabinete por saber que há muito tempo que eu vinha a falar da pastorícia como instrumento de gestão do fogo.

O tal primeiro concurso – penso que teria tido poucos candidatos, e era por isso que o Miguel, que eu conhecia de termos sido colegas na Universidade, queria ouvir a minha opinião – tinha sido desenhado para que a pastorícia apoiasse a gestão das faixas de gestão de combustível e o meu primeiro comentário foi exactamente no sentido de lembrar que havendo tão poucos pastores, e não havendo falta de terra para os rebanhos, era um bocado ingénuo pensar que os pastores iriam pôr os seus rebanhos a pastar nas faixas de combustível, isto é, onde o Estado queria que pusessem, em vez de os pôr a pastar onde era mais conveniente para o pastor (fossem quais fossem as razões do pastor para achar mais conveniente).

Continuo convencido, e é cada vez mais claro para mim, que estando o mundo rural depauperado de capacidade de intervenção e empresarial, não haverá políticas de sucesso que não partam das necessidades dos poucos agentes que gerem paisagens, estejam eles onde estiverem.

Continuar a olhar para paisagens é bom, perceber as necessidades de gestão da paisagem é bom, mas desenhar políticas de gestão da paisagem sem identificação clara de quem são as pessoas que realmente estruturam e gerem as paisagens e, por isso, são os destinatários dessas políticas, parece-me ser a persistência num erro que só a falta de avaliação de resultados das políticas do passado pode explicar.

O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.


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