guerra da água

Portugal e Espanha enfrentam uma “guerra da água”? Um explicador para entender o que se passa

O incumprimento do Estado espanhol em garantir o escoamento planeado de água do rio Douro para Portugal veio destapar um problema com décadas e que tem vindo a agravar-se com a situação de seca. Gestão das barragens em Espanha prejudica os interesses nacionais e especialistas defendem que Portugal tem de tomar uma posição mais firme e renegociar os caudais ecológicos a que tem direito.

O que se passou?

Na noite de terça-feira, o jornal Público noticiou que o estado espanhol não iria cumprir a sua quota-parte da transferência de água do rio Douro para o lado português. A confirmação veio da Confederação Hidrográfica do Douro, que anunciou ter cumprido uma ordem do Ministério da Transição Ecológica e Desafio Demográfico espanhol (MITECO) para “interromper a transferência” das águas para Portugal.

O Governo espanhol apressou-se a informar esta quarta-feira que a decisão foi tomada com o conhecimento de Portugal. Na sequência de uma reunião no sábado passado entre os governos dos dois países, foi tomada “de comum acordo” a decisão de “reduzir a descarga de água das barragens hidroelétricas durante esta última semana do ano hidrológico, perante a evidência de que já não se vai cumprir a 100 por cento o estipulado na Convenção de Albufeira”.

Mais tarde, os dois executivos apresentaram um comunicado no qual se comprometem a encontrar “soluções que minimizem os impactos” da seca, admitindo preocupação perante as previsões meteorológicas que obrigarão ao reforço da coordenação da gestão da água e da libertação de caudais.

A questão parece sanada, pelo menos do ponto de vista diplomático, mas destapa problemas que há muito se vêm a acumular. Parte do que causou esta situação foi o protesto dos agricultores espanhóis, que exigiram ao estado espanhol que não lançasse uma parte significativa da água para Portugal, pedindo antes que fosse armazenada para o cultivo agrícola.

Além disso, a situação poderá agravar-se com a futura aprovação do novo Plano Hidrológico da Bacia do Tejo por parte do executivo espanhol, que prevê uma redução superior a 40% da média anual para as regiões espanholas de Almería, Múrcia e Alicante. Escreve o Público que tal poderá afetar os caudais que Espanha tem de enviar para Portugal, tendo o jornal espanhol El Mundo chegado mesmo antecipar uma possível “guerra da água”.

Porque é que isto é tema?

Os cinco rios internacionais que passam por Portugal — Tejo, Douro, Guadiana, Minho e Lima — nascem em Espanha. A presença de barragens no lado espanhol dos caudais destes cursos de água obriga a uma gestão de quanto é que o país vizinho acumula e quando é que descarrega para o lado português durante um ano hidrológico — que se define como começando a 1 de outubro e terminando a 30 de setembro do ano civil seguinte. Esse equilíbrio foi definido pela Convenção de Albufeira acima mencionada, que por sua vez se encontrada na Diretiva Quadro da Água da União Europeia.

Assinado em 1998, este acordo “visou regular a gestão dos rios e das bacias hidrográficas partilhadas entre Portugal e Espanha”, explica ao SAPO24 António Gonçalves Henriques, professor do Instituto Superior Técnico (IST) e especialista em Hidráulica e Recursos Hídricos pelo Laboratório Nacional de Engenharia Civil.

“Procurou-se abordar vários aspetos dos recursos hídricos, como a gestão de caudais, cheias, secas, qualidade da água, etc… O mais importante, e no fundo é isso que está agora em causa, é o problema da gestão dos caudais”, adianta o professor, que também foi director-geral da Agência Portuguesa do Ambiente (APA) entre 2007 e 2010.

“Além da satisfação das necessidades de água, era fundamental assegurar o bom estado das águas dos rios”, algo que tem a ver com a qualidade da água e como a gestão hídrica deve assegurar a manutenção dos ecossistemas, para que “não estejam muito longe do que seriam as condições em regime não modificado pelo homem”, completa.

O que ficou acordado na Convenção de Albufeira?

Todos os anos, o país vizinho compromete-se a enviar anualmente um volume estipulado de água para Portugal. Este baseia-se num princípio definido no artigo 16º., onde se estipula “o regime de caudais necessário para garantir o bom estado das águas”.

Por exemplo, em anos normais, tem de enviar 3700 hectómetros cúbicos (hm3) do rio Minho, 7300 hm3 do rio Douro e 2700 hm3 do rio Tejo. Segundo o Público, o país vizinho está obrigado a transferir em anos normais um total de 14.300 hm3 para manter os rios saudáveis do lado português.

De início, os termos da convenção foram entendidos como “modernos e atuais para a altura”, comenta José Eduardo Ventura, professor na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Tem sido consensual perante os especialistas que o acordo funciona bem nos anos em que há excesso de água, pois “tem permitido gerir os caudais em épocas de cheia e melhorar as situações de inundação nos anos em que temos muita precipitação e caudais muito abundantes”. “Antigamente não havia gestão conjunta das bacias e os espanhóis faziam descargas das barragens sem atender às descargas feitas nas barragens portuguesas e vice-versa”, continua.

No entanto, os termos definidos em 1998 começaram a tornar-se cada vez mais desatualizados, como explica António Gouveia Henriques, sendo que é no cumprimento do artigo 16.º onde está a “fonte de todas as dificuldades”.

“Como não havia ainda em 1998 conhecimento suficiente para definir o estado das águas e quais os caudais correspondentes — os chamados ‘caudais ecológicos’ —, o que se definiu foi um regime provisório; em vez de definirmos em caudais instantâneos, ou seja, em metros cúbicos por segundo a cada instante, foram definidos volumes anuais — é como se estivéssemos a acumular todos os caudais instantâneos ao longo do ano”, diz.

Estamos a ser fornecidos com valores muito baixos [de água], e de repente vem uma brutalidadeAntónio Gouveia Henriques

Qual é o problema?

É que, ao contrário do que se espera de um rio a correr normalmente, “os espanhóis comprometem-se a libertar uma determinada quantidade de água, mas esta não é libertada em contínuo”, diz José Eduardo Ventura.

Ao invés, a tendência desde 1998 tem sido de […]

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