Portugal e UE querem cortes de emissões no estrangeiro a contar para as suas metas climáticas. "Isto mina a credibilidade das políticas europeias"

A Comissão Europeia quer reduzir para 90% as metas climáticas até 2040 sob o argumento de que são necessárias “flexibilidades” para tornar os objetivos mais palatáveis – e anúncio formal pode chegar no início de julho. Contudo, segundo o conselho europeu científico para as alterações climáticas, “apenas 16% dos créditos emitidos ao abrigo de vários programas de crédito de carbono produziram verdadeiras reduções de emissões” até à data. Para além de defender que o corte de emissões nas antigas colónias contem para o seu balanço, Portugal também pede “tratamento especial” com incêndios florestais

Passaram menos de 24 horas entre fontes da Comissão Europeia avançarem ao Politico que a UE ia comedir-se nas suas metas climáticas para 2040 e a aldeia suíça de Blatten, no cantão de Valais, ter ficado soterrada por água e lama na sequência do colapso do glaciar Birch – mais um resultado direto das alterações climáticas. E foi entre uma coisa e outra que, numa entrevista exclusiva ao mesmo site, a ministra portuguesa do Ambiente e da Energia adiantou que Lisboa apresentou duas exigências ao executivo comunitário no processo de negociação dessas metas climáticas.

A primeira é que as reduções de emissões poluentes em ex-colónias portuguesas decorrentes de investimentos do Estado português em projetos de energias renováveis sejam contabilizadas na meta de Lisboa e, consequentemente, na da UE – algo que, segundo disse a ministra ao Politico, deve acontecer mesmo que esses projetos não sejam regulados pelo regime global de créditos de carbono previsto no Acordo de Paris.

“É muito importante para nós que os investimentos que fazemos fora da Europa possam ser contabilizados para o objetivo [de 2040]”, disse a ministra Maria da Graça Carvalho após ter estado reunida com o comissário europeu da Ação Climática, Wopke Hoekstra, em Bruxelas. “Temos muito boas relações em termos de investimentos em energias renováveis, principalmente com os países de língua portuguesa. Todos os anos estamos a investir entre 12 e 14 milhões de euros em Cabo Verde. Estamos agora a fazer o mesmo com São Tomé e Príncipe, por isso queremos que isto também seja contabilizado no objetivo.”

Após o encontro e a entrevista, foi confirmado que a UE vai propor um objetivo de redução das emissões de 90% com “flexibilidades” quanto à forma como os países podem atingir essa meta na próxima década e meia – contemplando a hipótese requerida por Portugal e perante rumores de que o comissário europeu do Clima fez lóbi junto da Alemanha para que o acordo da nova coligação CDU-SPD, liderada por Friedrich Merz, defendesse este formato de contabilização de cortes de emissões no estrangeiro para o balanço da UE.

“Externalizar a redução das emissões da UE para outros países é possível sob o artigo 6 do Acordo de Paris, mas a UE sempre foi muito clara que não iria reduzir emissões por essa via”, refere à CNN Duarte Costa, especialista em alterações climáticas e copresidente do partido paneuropeu Volt. Essa rejeição era justificada, em parte, com os “riscos para a Europa”, adianta Duarte Costa, não apenas “em termos de desperdício de potencial, face aos benefícios económicos da transição”, como também porque “muitos desses créditos podem ser de má qualidade – por exemplo, pagar-se pelo restauro de uma floresta num país emergente e depois essa floresta arder ou ser derrubada, retirando credibilidade às metas da UE”.

Contactado pela CNN, o Ministério tutelado por Maria da Graça Carvalho defende que “as reduções de emissões geradas por projetos estruturantes nos países parceiros, nomeadamente em países da CPLP, devem ser reconhecidas e valorizadas, numa lógica de solidariedade internacional e de verdadeira ambição global no combate às alterações climáticas” foto: Lusa

“Modelo inovador”, diz tutela. “Soa neocolonial”, aponta analista

Não sendo uma coisa nova, aquilo a que os especialistas chamam de modelo de cooperação internacional no mercado de carbono – que permite que os países contabilizem como suas as reduções de emissões de gases com efeito de estufa que pagam noutros países – não é uma medida consensual.

Para a atual Comissão Von der Leyen, a abordagem torna “politicamente mais palatável” um objetivo cada vez mais impopular, por forma a garantir que quer o Parlamento Europeu, quer as 27 capitais aprovem as metas climáticas que a UE deveria ter apresentado há mais de um ano. Mas para grupos da sociedade civil e alguns partidos, as medidas podem enfraquecer os esforços globais do bloco para eliminar as emissões responsáveis pelo aquecimento global.

“Isto mina a credibilidade das políticas climáticas da UE e transfere indevidamente a responsabilidade para outras nações, abrindo enormes lacunas em vez de permitir a redução das emissões a nível interno”, dizia no mês passado Tiemo Wölken, eurodeputado alemão do SPD, sobre o potencial recurso a créditos de carbono fora do bloco.

“A contabilidade pode tornar-se bastante confusa e existe um risco real de se fazer duplas contagens”, adianta à CNN o analista Patrick Schröder. “Se aplicássemos o mesmo à Europa, qualquer investimento com baixas emissões de carbono na Europa por parte de países não-pertencentes à UE seria contabilizado para a redução de emissões de outros países?”, questiona o investigador do Centro de Meio Ambiente e Sociedade da Chatham House. “Por exemplo: se a China investir em infraestruturas de carregamento de veículos elétricos na Europa, isso conta para as reduções de emissões da UE ou da China?”

Contactado pela CNN, o Ministério do Ambiente português confirma que “o Governo português tem vindo a defender, junto da Comissão Europeia, que os investimentos verdes realizados por Estados-Membros fora da União Europeia, nomeadamente em países da CPLP, possam ser contabilizados para efeitos do cumprimento das metas climáticas da União Europeia, designadamente no horizonte de 2040”. 

“Portugal entende que as reduções de emissões geradas por projetos estruturantes nos países parceiros devem ser reconhecidas e valorizadas, numa lógica de solidariedade internacional e de verdadeira ambição global no combate às alterações climáticas”, adianta a tutela.

Confrontado com a entrevista da ministra Maria da Graça Carvalho ao Politico, Patrick Schröder destaca que “a proposta de Portugal, tal como apresentada no artigo, parece bastante neocolonial”, dado que Lisboa passaria a “deter” as reduções de emissões das antigas colónias – algo que, adianta o analista da Chatham House, “poderá perturbar não só esses como os países do Sul Global em geral”, no contexto de quem fica com os louros de que reduções.

Questionado sobre a carteira de investimentos do Estado português neste setor no estrangeiro, e se se limitam a ex-colónias portuguesas, o Ministério do Ambiente confirma que “este modelo de investimento está, neste momento, focado exclusivamente em países da CPLP, em linha com a estratégia de Portugal de reforçar as parcerias com países de língua portuguesa no contexto da transição energética e climática global”.

Na mesma resposta à CNN, a tutela adianta que se trata “de um modelo inovador de conversão de dívida em investimento climático, através da criação de fundos climáticos e ambientais [em que] as empresas portuguesas participam nos concursos públicos promovidos ao abrigo destes fundos, nomeadamente na área da construção, modernização e fornecimento de soluções energéticas”.

“Em Cabo Verde, este mecanismo foi lançado com uma dotação inicial de 12 milhões de euros provenientes de dívida convertida, a que se juntaram mais 2 milhões de euros de investimento direto por parte do Estado cabo-verdiano, que já financiam projetos como o repowering da Central Fotovoltaica de Palmarejo, na ilha de Santiago”. O fundo, acrescenta o Ministério, “foi posteriormente prorrogado até 2030, com uma dotação total prevista de 42,5 milhões de euros” e, em São Tomé e Príncipe, “o processo encontra-se numa fase avançada de negociação, com vista à replicação do mesmo modelo de cooperação climática e energética”.

Wopke Hoekstra, comissário europeu da Ação Climática, fez lóbi para que acordo de coligação CDU-SPD na Alemanha defendesse a inclusão de cortes de emissões no estrangeiro na contabilização de reduções da UE, por forma a convencer mais países a apoiar as metas climáticas de 90% para 2040 foto: Julia Demaree Nikhinson/AP

“Tratamento especial”

Na reunião com o comissário europeu do Clima, a ministra portuguesa também defendeu que Portugal, a par de países como Grécia e Chipre, devem ter “tratamento especial” no que toca às emissões dos incêndios florestais que ocorrem dentro das suas fronteiras, sob o argumento de que os fogos são consequências diretas de um fenómeno global que escapa ao controlo de Lisboa.

“Queremos um tratamento especial para nós e para os países que têm grandes incêndios”, afirmou Maria da Graça Carvalho, que antes de ser ministra foi eurodeputada do PPE. “[Os incêndios] são uma consequência das alterações climáticas e nós estamos, de certa forma, a ser penalizados pelas consequências das alterações climáticas. Não se deve atribuir a culpa a países específicos. É uma consequência das alterações climáticas, é como as emissões mundiais, em vez de serem as emissões de Portugal, Chipre ou Grécia.”

“O argumento de Portugal é válido, não há dúvida nenhuma”, refere à CNN Luís Costa, da empresa Get2C, que atua na área das alterações climáticas, energia, mercados de carbono, financiamento climático e desenvolvimento sustentável, para tentar limitar o aquecimento do planeta a um máximo de 2ºC. “Mas é precisamente por estar numa região mais suscetível às alterações climáticas que Portugal tem de tomar medidas de mitigação e adaptação – e esse é um argumento igualmente válido que a UE pode usar”.

Invocando uma discussão “difícil” do ponto de vista científico, para além de acarretar “considerações éticas”, Patrick Schröder, da Chatham House, destaca que estas emissões dos incêndios florestais “têm de ser contabilizadas de alguma forma nos orçamentos globais de carbono e, portanto, têm de ser atribuídas ao território em que ocorrem, pelo que ‘pertencem’ a Portugal – se Portugal é responsável é uma questão diferente”. 

Para Duarte Costa, “é lamentável que um país como Portugal – que, ao longo das últimas décadas, tem tentado apoiar as ambições e a transição climáticas, que está a descarbonizar o setor energético, mas que tem um problema com florestas – use esse tipo de argumento, quase como se fosse uma vítima inapta dos incêndios”.

“É o mesmo que a Polónia alegar que tem um legado de carvão por causa da URSS, com uma grande dependência de centrais a carvão, e dizer que, por causa disso, precisa de flexibilidade porque lhe é mais difícil a transição”, compara o especialista. “Se todos tiverem argumentos extrínsecos, que os desresponsabilizam, então a UE não vai a lado nenhum.”

Governo português diz que “não se deve atribuir a culpa [dos incêndios] a países específicos” por serem “consequência das alterações climáticas”; especialistas falam em “argumento válido”, mas dizem que “é precisamente por estar numa região mais suscetível às alterações climáticas que Portugal tem de tomar medidas de mitigação e adaptação – e esse é um argumento igualmente válido que a UE pode usar” foto: AP

Flexibilizar sim, externalizar não

Com as negociações das metas climáticas da UE em curso, e cada país apostado em negociar “flexibilidades” que o ajudem a cumprir os objetivos, Teresa Ribera, vice-presidente da Comissão Europeia responsável pelas questões climáticas e da concorrência, assumiu que Bruxelas está a tentar “manter os 90%” como meta, com a ressalva de que o objetivo para 2040 estará impregnado de “pragmatismo” e dos ajustamentos solicitados pelos 27 governos nacionais, que vão ter um importante Conselho Europeu nos próximos dias 26 e 27 de junho.

A declaração foi feita no final de maio, levando o European Scientific Advisory Board on Climate Change (ESABCC), organismo científico independente legalmente incumbido de fazer recomendações em matéria de política climática, a fazer uma “intervenção sem precedentes” para aconselhar o bloco a não utilizar créditos de carbono internacionais para atingir as suas metas.

“Um objetivo de redução doméstica de 90-95% para 2040 é exequível e do interesse estratégico da Europa”, sublinhou Jette Bredahl Jacobsen, vice-presidente do ESABCC, lembrando que as tecnologias necessárias para reduzir a dependência europeia dos combustíveis fósseis já estão “amplamente disponíveis” para ajudar a cumprir essa meta – “doméstica” sendo a palavra-chave, sob avisos dos cientistas de que externalizar a redução de emissões seria uma abordagem errada a vários níveis.

“Entrando na parte política, a Comissão não tem seguro que vá conseguir aprovar isto, seja no Parlamento Europeu, seja no Conselho Europeu”, aponta Duarte Costa, indicando que os 27 Estados-membros estão divididos em quatro grupos nesta matéria, entre aqueles que vão seguramente aprovar as metas propostas e os que estão firmemente contra e que são muito mais difíceis de convencer, como é o caso da Hungria e Chéquia.

“O problema é que os objetivos científicos estão hoje muito desalinhados dos objetivos políticos”, ressalta Luís Costa, da Get2C. “A Europa sempre teve um papel de liderança na ambição climática, temos legislação muito avançada, podemos realmente dizer que somos ponta-de-lança nisto. A questão é que isto está tudo ligado à competitividade de curto prazo. A médio e longo prazo, essa ambição climática pode ser benéfica, mas o que a UE está a dizer é que, por muita ambição que tenhamos, isto é um esforço que tem de ser conjunto, porque se avançarmos a uma velocidade diferente da do resto do mundo, no curto prazo, isso é prejudicial para nós [em termos económicos].” 

“Numa Europa a virar à direita, o argumento do compromisso com o planeta não vinga, mas o argumento de sermos competitivos no mundo e não dependermos dos fósseis, de ter energia mais barata por ser renovável, de ter uma atmosfera mais limpa que traz mais qualidade de vida, logo menos custos – a direita e até mesmo a direita radical não veem com maus olhos nada disto, pelo contrário” foto: Matthias Schrader/AP

Numa “Europa a virar à direita”, defende Duarte Costa, do Volt, a estratégia de comunicação deste tema tem forçosamente de ser outra, até no contexto da mudança de rumo de Ursula Von der Leyen, que definiu a competitividade como a grande prioridade do seu segundo mandato à frente da Comissão Europeia, levando muitos a questionar se a transição verde em que apostou no primeiro mandato ia ficar pelo caminho. 

“O argumento do compromisso com o planeta não vinga neste contexto, mas o argumento de sermos competitivos no mundo e não dependermos dos fósseis, de ter energia mais barata por ser renovável, de ter uma atmosfera mais limpa que traz mais qualidade de vida, logo menos custos – a direita e até mesmo a direita radical não veem com maus olhos nada disto, pelo contrário”, destaca o especialista.

Com um relatório de 60 páginas do ESABCC a apontar que “apenas 16% dos créditos emitidos ao abrigo de vários programas de crédito de carbono até à data produziram verdadeiras reduções de emissões” – na primeira vez que o conselho científico comenta um debate político em curso desta forma – Duarte Costa reconhece “não é ideal” que a Comissão Europeia esteja a considerar contabilizar créditos de carbono externos à UE na sua meta de 90% para 2040, o limiar mínimo definido pelo ESABCC e pelo Acordo de Paris.

Citados pelo Politico esta semana, dois diplomatas europeus disseram que a Comissão pretende apresentar oficialmente as suas metas para 2040 no próximo dia 2 de julho, no arranque do mandato da Dinamarca na presidência rotativa da UE. As mesmas duas fontes adiantaram que Alemanha, França e Polónia estão todos a bordo da proposta de contabilização de créditos de carbono estrangeiros nas reduções de emissões do bloco, a menos de meio ano da próxima Cimeira do Clima (COP30), no Brasil.

“Reconhecendo a situação política, pode ser necessário encontrar alguns elementos de flexibilidade para aprovar algo ambicioso”, reconhece Duarte Costa à CNN. “Agora, o importante é que o que resulta dessa flexibilização não ponha em causa a meta de 90% e que essas reduções sejam domésticas. Externalizar para outros países pode acontecer, mas não pode contar para a meta europeia – e Portugal pode e deve ajudar, mas não deve poder utilizar essas reduções como parte da sua responsabilidade de reduzir emissões.”

Veja a reportagem na CNN Portugal.


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