António Covas

Produção conjunta, capital natural e serviços de ecossistema

A lógica convergente das Grandes Transições – climática, ecológica, energética, digital, alimentar, demográfica, migratória – tem um impacto fortíssimo nos sistemas produtivos locais e regionais e, muito em particular, na associação estrutural entre produção conjunta, capital natural e serviços de ecossistema. Lembro aqui os principais serviços de ecossistema: serviços de produção (alimentos, fibras e madeira), serviços de regulação (ciclo da água, sequestro e armazenamento de carbono), serviços culturais (recreio e lazer), serviços de suporte (fertilidade dos solos, ciclo de nutrientes).

Sabemos que a lógica própria da agricultura de especialização projeta uma fileira verticalizada e que a sua cadeia de valor se desenvolve para jusante em direção à transformação agroindustrial e agroalimentar. Por outro lado, a lógica da agricultura de diversificação (policultura) desenvolve uma lógica de integração mais horizontal, sob a forma de mosaico produtivo e sistema produtivo local, pelo que a sua cadeia de valor se dispersa mais, em linha com os ecossistemas e a biodiversidade que a suporta. Daqui decorre que uma agricultura diversificada e policultural apresenta, em princípio, uma produção conjunta mais elevada e, portanto, um nível de serviços de ecossistema também mais elevado.

Sabemos que se cumprirmos as tarefas mínimas de ordenamento, planeamento e monitorização das populações e comunidades que integram um ecossistema e os seus habitats mais representativos, teremos, provavelmente, uma estrutura de custos de biodiversidade e conservação e, agora, também, de circularidade (matérias-primas secundárias), que poderemos transferir para o valor de troca dos bens comerciais da nossa produção conjunta, se soubermos, ao mesmo tempo, fazer explicitamente a demonstração pública aos nossos clientes do modo como se realiza essa produção conjunta e como se formam os seus valores de troca, existência e opção.

Sabemos, com efeito, que uma cuidada especificação e explicação de todas as tarefas ligadas à biodiversidade, conservação e circularidade nos permite chegar a um custo de produção de biodiversidade, conservação e circularidade e a imputar ou transferir esse valor para as produções com certificação e com mercado denominado através de um marketing agroecológico condizente com essas características. Aliás, uma investigação cuidada sobre as formas de fazer produção conjunta, capital natural e serviços de ecossistema pode alargar bastante o menu das produções com mercado potencial, se, para tal, formos capazes de dar maior visibilidade aos produtos do agroecossistema e do território em formação.

Dois exemplos ajudam-nos a perceber a complexidade desta produção conjunta, multifuncional e circular. Em primeiro lugar, a produção conjunta turismo sustentável e o aprofundamento da cadeia de valor que suporta o próprio conceito. De facto, não nos parece que possa haver turismo sustentável sem a presença dos inputs seguintes:

  • A gestão dos valores da paisagem global, cénicos, estéticos e artísticos;
  • A gestão de amenidades rurais, a criação de mosaicos e unidades de paisagem rural com finalidades de observação, de passeio, de aventura, de desporto;
  • A gestão do património e da arquitetura local e dos seus materiais tendo em vista uma construção bioclimática e de baixo custo;
  • A gestão da infraestrutura agroecológica local, do modo de produção biológico como forma dominante de produzir alimentos, mas, também, de outras formas de agricultura ecológica com impacto pedagógico e simbólico e, também, de visitação ecoturística;
  • A gestão dos sistemas descentralizados e integrados de micro geração a partir de diferentes formas de energia renovável, que têm, igualmente, um elevado efeito pedagógico, demonstrativo e de visitação turística se forem desenhados produtos turísticos para os integrar convenientemente;
  • A gestão dos sistemas e tecnologias agrárias usados na produção de alimentos e fibras deve ter, igualmente, um conteúdo informativo, pedagógico e turístico, por corresponder a opções fundamentais em matéria de conservação de recursos naturais e biodiversidade; esses sistemas e tecnologias devem dizer-nos, claramente, como são abordadas as espécies autóctones, os habitats respetivos, as formas de mitigação e adaptação às alterações climáticas, pois, quanto mais evidentes forem os modos de explicitar essas abordagens mais valor turístico apresentarão e mais valor transferem para os produtos com mercado;
  • A associação do património natural e construído com as artes e a cultura tradicionais não é independente dos modos de produzir, trabalhar e preservar e, em conjunto, têm um elevado valor simbólico e turístico.
  • No mesmo sentido, é fácil de perceber que a gestão específica da conservação e da biodiversidade, apenas como elementos decorativos da visitação turística acabará, tarde ou cedo, por ter resultados contraproducentes.

O segundo exemplo diz respeito à produção conjunta montado, ao sistema de produtos nele contido e ao desenho da sua cadeia de valor. A pergunta pertinente é, qual a sustentabilidade que é compatível com a produção conjunta montado?

A resposta não pode deixar de incluir aspetos fundamentais da gestão multifuncional do montado como são: a gestão do balanço mineral do solo e as análises regulares ao solo, a fertilização orgânica adequada, a mobilização mínima do solo, em curvas de nível e não em declives, o uso de sistemas alternativos ao controlo de matos sem mobilização do solo, a proteção de arbustos jovens de interesse, a gestão do encabeçamento atendendo aos efeitos de compactação do solo e ao excesso de pastoreio, a não utilização de queimadas, o controlo de vegetação para diminuir o risco de incêndio por via de pastoreio animal, o sistema de recolha e tratamento de efluentes domésticos e pecuários para não contaminar as linhas de água, a recolha de resíduos não biodegradáveis, os sistemas de vigilância e monitorização de pragas vegetais, os sistemas de vigilância e combate a incêndios, as boas práticas de economia circular. Todas estas ações, devidamente estruturadas e comunicadas, constituem motivos de visitação e turismo rural ao ecossistema montado.

Nos dois exemplos são conhecidos, também, os problemas de valoração e valorização dos serviços de ecossistema associados e o modo como, por causa disso, se verifica um nível de oferta insuficiente e irregular desses serviços, logo, também, uma quantidade e qualidade inferiores de benefícios ecossistémicos que são fundamentais para a qualidade de vida das populações. A este propósito, a temática dos pagamentos por serviços ambientais e ecossistémicos está na ordem do dia e é uma policy-line com um enorme futuro à sua frente.

Com efeito, a indivisibilidade afeta tanto a produção conjunta, do lado da oferta, como os serviços ecossistémicos, do lado da procura. Esta dupla indivisibilidade está na origem das dificuldades, que conhecemos, em matéria de valoração e valorização de bens e serviços públicos. Aqui, também, podemos dizer que existe um continuum de conexões funcionais entre produção conjunta e serviços de ecossistema que vão desde a conexão mais próxima do mercado (preço) até à conexão mais próximo do bem público puro (imposto). Em cada caso, três relações são decisivas: a relação de divisibilidade (preço, taxa, imposto), a relação de visibilidade (identificação dos destinatários finais dos serviços), a relação operacional, isto é, a ação coletiva e os custos de transação para operar.

Notas Finais

A terminar, quatro breves notas, que justificam a nossa preocupação inicial com a convergência das grandes transições e seus impactos expressivos sobre os sistemas agroecológicos locais e regionais.

Em primeiro lugar, e no plano mais técnico e tecnológico, não temos qualquer dúvida de que os ativos do capital natural serão melhorados e apreciados se aprofundarmos a relação funcional entre biodiversidade, conservação e circularidade.

A segunda nota é para reafirmar que a produção, a conservação e a recreação não são compartimentos estanques na relação entre produção conjunta, formação do capital natural e serviços de ecossistema; pelo contrário, há inúmeras trocas internas nessa relação de necessidade funcional e promover essas trocas internas em conjunto com as externalidades positivas é o único sistema que paga a médio e longo prazo.

A terceira nota para é para realçar a conexão entre preço, imposto e contrato que nos diz que há inúmeros formatos possíveis de arranjos funcionais entre a cadeia de valor e os serviços de ecossistema; se assim não for, esses arranjos poderão ficar entregues à sociologia política interna, ao sabor das relações de poder do momento e, portanto, incapazes para sustentar uma política pública de cariz contratualista de pagamentos por serviços ambientais e ecossistémicos, cujos beneficiários são, em primeira mão, os agricultores e os empreendedores agro rurais.

Uma última nota. Dados os impactos no território das grandes transições, a associação estrutural entre biodiversidade, capital natural e serviços de ecossistema só pode ser garantida no âmbito de programas integrados de desenvolvimento regional onde existe uma retaguarda suficiente de medidas de política para atacar um problema que pode irromper a qualquer momento com uma gravidade inusitada, como, aliás, podemos comprovar com os acontecimentos recentes que juntam as consequências dos fogos florestais, às inundações e poluição das linhas de água e à destruição dos sistemas produtivos da pequena agricultura. Fica o alerta.

António Covas

Professor Catedrático na Universidade do Algarve

A morte anunciada do rural tardio português!


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