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“Que lições aprendemos com o debate sobre os OGM?” – Pedro Fevereiro

No passado mês de Junho, na Feira Nacional da Agricultura, em Santarém, decorreu a Conferência Internacional sobre o tema em título. Desde 1998, ano em que os primeiros carregamentos de milho geneticamente modificado chegaram à Europa, que defendo que as variedades agrícolas melhoradas com recurso à engenharia genética devem ser adotadas em Portugal e na Europa. Neste texto, e no seguimento da Conferência a que assisti, pretendo apresentar um pouco do que aprendi deste então para cá.

Este texto tem de ser enquadrado pela realidade Europeia: a maioria dos países europeus continua a rejeitar o uso da tecnologia do DNA recombinante como método para introduzir melhorias nas características das culturas agrícolas e florestais. Apesar da regulação mais exigente e mais estrita de todo o mundo, a Europa não aprova o cultivo de variedades melhoradas com esta tecnologia, mesmo depois de ultrapassados todos os crivos técnicos e científicos. O único evento aprovado para cultivo introduzido em variedades de milho permitindo a resistência a brocas, é “velho” de 20 anos e apenas utilizado em 3 países europeus, sendo um deles Portugal. Pese embora todas as restrições a Europa importa de países terceiros matéria prima produzida com variedades melhoradas com esta tecnologia, e depende dessa importação para fazer sobreviver os seus sectores pecuário, suinícola e avícola.

Este texto enquadra-se ainda numa nova realidade: a de que existem novas metodologias moleculares de melhoramento (Novas Técnicas de Melhoramento, em Inglês – NBT – “New Breeding Techniques”), que utilizam a edição precisa do DNA, ou o controlo da expressão de genes, para introduzir características desejáveis nas culturas agrícolas. Presentemente a Europa está envolvida numa discussão sem prazo e sem perspectiva sobre a possibilidade de vir a regulamentar estas novas tecnologias e se estas tecnologias devem “cair” na alçada da diretiva que regulamenta o uso de OGM.

Antes de apresentar a minha lista, devo referir que reconheço que os aspetos que refiro estão, sobretudo, relacionados com a minha experiência como cidadão português e que poderia ter percepções diferentes se a minha experiência fosse a de uma realidade de outro país Europeu. Também referir que o texto representa somente a minha perspectiva pessoal. Finalmente esta lista não segue nenhuma ordem de importância.

1 – O pós-modernismo, o movimento verde e o movimento antiglobalização articularam as suas estratégias para se oporem à utilização dos produtos agrícolas desta tecnologia. As suas mensagens, mesmo quando anticientíficas, ou falsamente científicas, são suficientemente atraentes para um vasto público, sobretudo citadino, que as considera associadas à necessidade de proteger o ambiente e de ter um estilo de vida considerado mais saudável. São também fáceis de assumir pelos órgãos de comunicação social, que para além de as associar a uma agenda “ambientalista”, as utiliza por serem negativas e sensacionalistas. As mensagens e atitudes veiculadas por esta estratégia são assumidas por membros de todas as correntes políticas.

2 – A comunicação desta tecnologia e dos seus produtos ao público em geral implicou simplificações e em geral a sua idilização. Neste processo de comunicação foi esquecida toda a história da domesticação e de melhoramento das culturas agrícolas. Foi também esquecido que uma parte substancial da população europeia atual não tem ligação ao campo e à agricultura e não compreende a necessidade de se produzir mais e de uma forma mais eficiente e sustentável. De resto ainda há não muitos anos era comum dizer-se na Europa que não era necessário aumentar a produtividade e eficiência agrícola.

3 – A população urbana não tem conhecimento dos processos de domesticação e melhoramento das culturas, mas também, na sua grande maioria, não tem conhecimentos suficientes de biologia molecular e não compreende que as novas tecnologias são evoluções dos métodos de melhoramento praticados há centenas de anos. O público em geral não compreendem que não faz sentido falar de “integridade do DNA”, quando o conhecimento atual nos diz que esta molécula está em constante mutação, que os genomas dos diferentes organismos partilham entre si os mesmos componentes, que o genoma de qualquer espécie é constituído, por vezes em mais de 50% por componentes virais e que durante a evolução existiu (e continua a existir) transferencial horizontal de genes (entre espécies que não se cruzam sexualmente entre si). Toda esta informação, recolhida nos últimos 15 anos, associada à sequenciação e estudo dos genomas, não teve reflexo na regulamentação europeia desta tecnologia, que por isso se encontra obsoleta, mas que analisada pelo público em geral apresenta uma imagem de grande perigosidade para os produtos desta tecnologia.

4 – A população urbana não se revê nas atividades agrícolas e portanto não compreende a necessidade de se desenvolverem variedades vegetais que permitam ganhos efetivos de produtividade, resilientes às condições edafoclimáticas e adaptáveis às condições locais. O baixo custo dos produtos alimentares não reflete as dificuldades de produção no campo, as exigências que a regulamentação coloca à produção, os preços ao produtor, as cargas horários do trabalho rural, entre outras situações.

5 – A apresentação da Agro-Biotecnologia como um modo de produção agrícola condiciona a discussão e a aceitação de novos métodos de melhoramento. A Agro-Biotecnologia não é um modo de produção agrícola! É um conjunto de métodos de melhoramento molecular que aumentou a precisão com que se ajustam as características das culturas às necessidades da produção, da comercialização, do consumo e da saúde humana e animal. As variedades melhoradas com esta tecnologia são utilizáveis em qualquer modo de produção – convencional, proteção integrada, orgânico.

6 – Os decisores políticos regem-se por critérios diferentes dos critérios científicos e isso não pode ser ignorado. A exigência de que as decisões políticas sejam tomadas de acordo com o conhecimento científico é um equívoco. No entanto é inaceitável que se justifiquem decisões políticas com informações científicas falsas, desatualizadas ou que não se aplicam à situação a legislar. Há ainda que notar que muitos decisores políticos se regem por percepções, na perspectiva de que se não o fizerem perderão votos para os seus partidos. No entanto estas percepções não são, em geral, testadas.

7 – A excessiva regulamentação e legalismo que envolve a adopção de variedades melhoradas com recurso à engenharia genética tem origens que não podem ser ignoradas e que condicionam o desbloqueamento da situação atual. Não foram apenas os movimentos ditos “anti-transgénicos” que condicionaram a regulamentação atual. Na sua génese estiveram também interesses corporativos que aumentaram os níveis de exigência para reduzirem níveis de concorrência. Por outro lado a perspectiva de uma revisão morosa e politicamente sensível da regulamentação tem impedido o envolvimento de decisores políticos na revisão da regulamentação, motivável pelas experiências positivas da produção e consumo dos produtos desta tecnologia.

8 – Os opositores que desenvolvem estratégias contra o uso da Biotecnologia na Agricultura não são nem incultos nem incompetentes. A perspectiva de que “se as pessoas tiverem mais conhecimento científico esta tecnologia será vista de outra forma” não é verdadeira. Inquéritos suficientemente robustos demonstram que a concordância com o uso desta tecnologia não está associada à falta de literacia científica. De notar que o conhecimento científico está atualmente disponível para qualquer pessoa.

9 – A formação ao nível do ensino básico e secundário transcreve, muitas vezes sem justificação científica, a perspectiva negativa que se enraizou na sociedade urbana relativamente a esta tecnologia. Esta realidade releva a pouca formação ao nível da biologia molecular e da biotecnologia da maioria dos professores e também a forma pouco cuidada como os manuais escolares abordam esta temática. Mas esta realidade enforma as decisões que virão a ser tomadas pelas gerações mais jovens.

10 – Uma parte significativa das pessoas tem medo de debater esta temática. Uma parte daqueles que a debatem e que chegam à conclusão que ela é aceitável temem opor-se à visão, sobretudo urbana, de que “os OGM” são inimigos do ambiente.

11 – O valor económico gerado pelo “não” à aceitação da tecnologia é já relevante a vários níveis. Uma alteração da regulamentação que permita o uso da tecnologia na Europa criará mudanças importantes, que condicionará a vida de muitos cidadãos e que contrariará estratégias comerciais, como aquelas que são assumidas por grandes grupos distribuidores, relativas à não comercialização de produtos ditos “OGM”.

12 – A exigência de certezas absolutas sobre o não risco para a saúde humana e animal dos produtos desta tecnologia condiciona o debate sobre a sua utilização. Ninguém pode dar garantia absoluta de que não existe risco. No entanto, em mais de 20 anos de utilização, não é possível fazer um cálculo do risco, visto não ter existido qualquer incidente na saúde humana ou animal devido ao uso dos produtos desta tecnologia.

O que aprendi então com o debate sobre a utilização dos OGM? Que existe um conjunto de idiossincrasias sócio/político/económicas que impedem a evolução deste debate, e que nada têm a ver com o conhecimento científico atual ou com a prática da utilização dos produtos do melhoramento molecular de precisão.

O debate sobre a adoção das Novas Técnicas de Melhoramento está já inquinado pelas percepções criadas pelo debate sobre os “OGM”. Sendo um conjunto de tecnologias derivadas da anterior, sofrerá o mesmo tipo de argumentos para a sua não adoção na Europa.

Só um debate honesto, incluindo todas as partes, livre de preconceitos, aceitando a rápida evolução dos conhecimentos científicos e observando a prática da utilização destas tecnologias permitirá um passo em frente. Espero que Portugal contribua para que esse passo em frente possa ser dado na Europa.

Pedro Fevereiro

Biólogo, Professor Auxiliar, Agregado

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