Portugal encontra-se na iminência de ultrapassar a quota leiteira na campanha que termina em 31 de Março de 2003. Nesse sentido, é com muita preocupação que vejo a situação das centenas (ou milhares?) de agricultores responsáveis por essa ultrapassagem que terão de assumir o pagamento da multa de 73$57 por litro de leite produzido fora da “quota portuguesa”. Eu sou produtor de leite, não vou ultrapassar a minha quota, mas não posso ficar indiferente ao drama que se passa à minha volta.
A lei que regula o pagamento dessa Imposição suplementar (Dec. lei 240/2002, de 5 de Novembro), no seu artigo 15º, permite, a partir do final do 2º trimestre da campanha leiteira, que os compradores façam retenções no pagamento do leite aos produtores que estiverem a exceder a quota, a título de provisão para o eventual pagamento da multa.
Face aos números disponíveis, alguns compradores começaram a fazer essa retenção (50% do valor a pagar) em finais de Novembro, relativamente aos pagamentos de Outubro. Tal situação deixou em dificuldades económicas muitos agricultores, dificuldades agravadas nos casos em que às despesas correntes acrescem empréstimos a pagar. Agora, em Janeiro de 2003, relativamente ao pagamento de Dezembro, a situação agravou-se para alguns produtores que, sem aviso prévio, viram a totalidade do pagamento retida, ao abrigo de uma interpretação da lei que me parece muito discutível e cuja execução é humanamente pouco aceitável. Na prática, as pessoas estão desde já a ser penalizadas por uma “eventual” ultrapassagem que só será calculada a partir de Abril ( O INGA tem até 31 de Julho para notificar os compradores do valor a pagar e esse pagamento deverá ser feito até 31 de Agosto). É como se a polícia nos exigisse a multa por excesso de velocidade antes de pararmos o carro.
E que pode fazer um produtor de leite que recebe “zero” no final do mês? Como vai pagar aos fornecedores, aos empregados, à EDP, alimentar a família, alimentar os animais? É dramática a situação que se vivem em muitas empresas agrícolas familiares neste momento.
É fácil dizer que os produtores foram avisados e portanto deviam ter comprado quota ou reduzido a produção. É fácil porque é verdade, mas também é verdade que ainda há dois anos se fizeram os mesmos avisos e depois ninguém pagou multa (lembra aquela história do Pedro, aquele pastor que andava sempre a gritar “lobo!”); Também é verdade que muitos esperaram a resposta da candidatura à reserva nacional que só chegou há poucos dias. Também é verdade que muitos já estavam endividados e não quiseram endividar-se mais para comprar uma coisa que não se vê (o direito de trabalhar!) ainda por cima com notícias contraditórias sobre o futuro das quotas na Europa. “Comprar uma coisa que vai desaparecer?”- foi o que muitos pensaram. Também é verdade que sempre houve gente a produzir fora da quota e nunca foi penalizada, porque outros produziam abaixo da quota e o país estava livre da multa. Daqui se conclui pela importância da divulgação dos números de produção do país. E de que números dispomos neste momento, nós, o “povo”, os agricultores? Uma comunicação do INGA datada de 27 de Dezembro, publicada aqui no AGROPORTAL, com os dados da produção até Outubro, mas com a referência, a partir de Julho, de que “não contempla os dados da RAA e de alguns compradores do continente”. De que nos servem dados assim? Não está na mesma lei (artº 7, nº6) a obrigação do comprador comunicar ao INGA os registos da quantidade mensais de leite recolhidas a cada produtor, até ao dia 10 do 2º mês seguinte ao mês a que respeita? E que dizer dos sucessivos atrasos nos processos de transferência e de candidaturas à reserva que ocorreram nos últimos anos?
Que fazer, então? “Ajustar a quota à produção – comprar quota ou reduzir a produção” – dizem aos produtores. Comprar quota significa quase sempre endividar-se. Mas, atenção: Se houvesse quota disponível para vender, o país não ultrapassava a quota. Portanto, a quota à venda não chega para todos. Resta reduzir: fazer os animais passar fome (quantos serão, neste momento?) ou vender, abater, refugar. É o que se faz nos Açores, actualmente. E no continente, não se pode fazer nada? Ninguém faz nada? Não há dinheiro ou não há vontade? Ainda faltam dois meses para o final da campanha: Tudo o que se reduzir em produção vai reduzir a multa a pagar. Depois de Abril, não adianta chorar pelo leite ultrapassado…
A lei define claramente que são os produtores a pagar a multa e não pretendo discutir esse ponto. Só não aceito que Estado e compradores lavem as mãos como Pilatos e deixem os “pagadores” abandonados à sua sorte. O Estado tem responsabilidades por tudo o que não fez no passado para que a máquina de gestão das quotas funcionasse como devia. Os compradores também ganharam a sua margem com o leite produzido fora da quota e sentem agora nos resultados económicos as quebras de produção. Estado e compradores tem obrigação de fazer o possível para ajudar os produtores em maiores dificuldades a ultrapassar esta situação. É preciso cuidado com as terapias de choque, para evitar execuções de cadeira eléctrica. Sobretudo, é importante haver calma, bom senso e respeito pelas pessoas. O ambiente está explosivo, mas perder a cabeça só vai piorar as coisas.
Carlos Neves
Jovem Agricultor