Tomás Roquette Tenreiro

Recuperar a agronomia para conservar a agricultura – Tomás Roquette Tenreiro

Muito provavelmente não direi aqui nada que muitos não se tenham já apercebido. As causas deste paradigma são já uma realidade para muitos agricultores e empresários agrícolas mas não considero por isso menos importante partilhar convosco uma reflexão que me parece necessária por prever, num futuro mais próximo do que eventualmente julgamos, que esteja verdadeiramente em risco a condição de agricultor e o seu direito à liberdade que Armando Sevinate Pinto tão bem descreveu – “Ser agricultor é também vocação e sorte. É escolher uma profissão que dá sentido à vida, que nos dá prazer, liberdade e independência. Nem sempre independência financeira, mas quase sempre independência de carácter”.

Recentemente em Montpellier, num encontro organizado pelo ‘Institute national de recherche pour l’agriculture’ (INRA) e pelo ‘Centre de coopération internationale en recherche agronomique pour le développement’ (CIRAD), onde tive a oportunidade de privar com alguns dos agrónomos que ainda preservam alguma compreensão do campo e da ruralidade na comunidade científica (uma espécie, muito infelizmente, em vias de extinção), experimentei com evidência uma tendência que não é nova mas que julgo que se tem intensificado nos últimos anos. Um dos sinais com que me deparei resulta em parte da recente alteração da sigla INRA para INRAE (Institute national de recherche pour l’agriculture et l’environnement), que inevitavelmente é o resultado de uma reforma institucional que tem ocorrido um pouco por todo o Mundo e que contribui, muito indesejavelmente, para uma marginalização da agricultura dentro das prioridades de investigação deste tipo de organizações. O que aparentemente se trata apenas de uma letra é na verdade o resultado de um processo de alteração das prioridades de diversos fundos e instituições ligadas à investigação agrícola, à extensão de ciência, ao desenvolvimento rural e ao poder político associado.

Em contraste com esta corrente estão os sobreviventes de uma linha de pensamento e acção que ainda dedica espírito crítico à ciência, com verdadeira experimentação e observação, com projectos colaborativos com o sector, que ouve mais do que fala, que compreende a diversidade agronómica e rural. Esses são aqueles que preservam a estratégia em lugar da táctica e que verdadeiramente compreendem que o empirismo e o mecanismo se complementam. Esses são uma espécie em vias de extinção! Refiro-me a um perfil que pertence na sua ampla maioria a uma outra geração que não a minha e que sofre também assim uma inevitável pressão pelo avançar do tempo. Da mesma forma que o tempo nos distancia, igualmente o espaço parece trazer diferenças. Maioritariamente australianos, ocidentais em África, e alguns (em menor parte) norte-americanos, são os que parecem conservar muito deste património humano que a ciência agronómica está a perder na Europa. Na verdade, estamos também aqui a pagar o preço de um contexto sócio-político que centralizou o financiamento da ciência, roubando originalidade e ambição na construção de objectivos e prioridades. A fragmentação de Ministérios, o corte de verbas, a incerteza associada às reformas de planos da Política Agrícola Comum (PAC), a sobre-regulamentação, a falta de inovação e a consequente perda de competitividade, resultado de um aumento interminável dos custos, concomitante com a estabilização da produtividade (fruto da falta de planos efectivos de melhoramento e de verdadeiro progresso agronómico) para uma vasta quantidade de culturas e de sistemas com importância sócio-económica na Europa, ditam o passo dos tempos e são a meu ver o resultado agregado deste paradigma.

Hoje sinto por comparação com muita da literatura anteriormente publicada, e com as fases de progresso observado em décadas anteriores, que existe uma considerável perda generalizada de visão agronómica na comunidade científica que se pretende ao serviço da agricultura. O desprezo pela técnica, é também ele um preço que está a ser pago pela aventura ideológica que a esquerda tem implementado ao promover a uniformização em lugar da diferenciação. A agricultura e a ruralidade são patrimónios vastos cujo valor se perde quando submetidos à visão simplista a que nos querem condenar. Entender um sistema agrícola e a realidade rural associada não é algo possível através de mensagens únicas que servem o mediatismo mas não o progresso. Esta tendência contribui para uma incapacidade crescente de abordar com ciência as necessidades do campo, o que inevitavelmente irá hipotecar as gerações que infelizmente sejam apanhadas neste ciclo. Talvez por isto a Europa e a PAC enfrentem hoje níveis de incerteza e vulnerabilidade tão preocupantes.

A confrontação entre o sector e as elites governativas é crescente por toda a Europa. Assistimos hoje a inúmeras manifestações e concentrações de agricultores, cujas justas causas parecem cair recorrentemente na incompreensão dos que cada vez mais, e erradamente, mandam. Em contrapartida, temas como a agricultura biológica, a agricultura de conservação (enquanto corrente que condena indiscriminadamente a mobilização do solo), a oposição ao regadio e à monocultura, a rejeição de tecnologia de nutrição e fitossanidade de síntese, e a “criminalização” da engenharia genética, entre tantos outros, negam a discussão técnica, verdadeiramente contextualizada, e impedem a sobrevivência da agronomia na comunidade científica do futuro. Este paradigma não apresenta sinais de melhoria, pois a tendência que encontro nas gerações mais novas embarca na facilidade da teorização em lugar da experimentação, dos dados em lugar da interpretação, do modelo em lugar da obra. Cada vez menos “cientistas” são capazes de compreender (porque não medem e pouco estudam) que a tecnologia não é necessariamente antagónica ao cuidado, que a mobilização do solo não é inevitavelmente promotora da sua degradação, que a captação e uso da água não nos condena invariavelmente ao seu sobre-uso. Cada vez menos cabeças compreendem que a boa gestão (matematicamente falando) é um processo contínuo e não discreto. Em realidades contínuas, a quantificação através da engenharia é a única garantia que temos de saber se estamos no caminho certo, e infelizmente esse esforço tem se perdido na realidade científica Europeia. Cada vez temos mais dados mas cada vez medimos menos aquilo que verdadeiramente interessa. As etiquetas que colocamos à forma como lidamos com a agricultura, polarizam opiniões e afastam-nos do contínuo (da medição) no qual reside a sua realidade. Esse caminho é redutor e está a destruir a própria agricultura.

Não quero com isto que as minhas palavras sejam recebidas como pessimistas. Quero apenas alertar para uma realidade que identifico como estruturalmente crescente no contexto de inúmeras instituições que muito em breve deixarão por completo de estar ao serviço da agricultura. Ou nos mostramos capazes de resgatar este “perfil em vias de extinção” na formação das novas gerações, ou muito em breve a agronomia estará condenada à nostalgia e à memória dos tempos em que soube ser de facto a mais fascinante das ciências.

Tomás Roquette Tenreiro

Engº. Agrónomo, investigador no CSIC e PhD-candidate em Hidrologia Agrícola pela Universidade de Córdoba


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