Reforma Agroflorestal: Uma urgência para Portugal

image

Cinquenta anos depois do controverso processo da Reforma Agrária, Portugal precisa, mais do que nunca, de uma nova reforma. Podemos chamá-la de Reforma Agroflorestal ou outro nome qualquer, porque o essencial não é o título, mas sim a urgência de resolver um problema estrutural.

Este é um tema que convoca todos, desde os saudosistas do lema “a terra a quem a trabalha” até aos liberais que torcem o sobrolho sempre que se fala em compra ou expropriação de terrenos pelo Estado. O apelo aqui é outro: uma análise desapaixonada, ancorada em factos e soluções.

O retrato oficial da propriedade de dono desconhecido ou sem gestão ativa

Segundo dados do Balcão Único do Prédio (BUPi), consultados em agosto de 2025, apenas 32% das propriedades rústicas e mistas se encontram identificadas, 2 788 298 de um total estimado de 8 640 774. Em termos de área, apenas 36% estão identificados, o que representa 1 410 142 hectares de um total de 3 946 555 hectares.

Estes números revelam que mais de metade dos terrenos rústicos continuam sem cadastro completo e, na maioria dos casos, sem sequer estarem identificados.

Se não sabemos quem são os donos de grande parte do território, como podemos exigir a sua gestão? A resposta é simples: não podemos. E o resultado está à vista.

Um País a arder

Em 2025, Portugal voltou a enfrentar uma realidade inquietante: quase 60 000 hectares de área ardida só este ano, 15 000 dos quais desde domingo passado (Observador, 11/08/2025). Estes valores chegam poucos meses depois de 2024 ter sido o pior ano em área ardida desde o trágico 2017 (Expresso, 25/03/2025).

Estes números contrastam de forma gritante com as declarações otimistas de alguns governantes no ano anterior, quando celebravam o menor número de incêndios desde que havia registos. A realidade, como se vê, não justificava triunfalismos bacocos: o problema é estrutural.

É ilusório esperar resultados diferentes sem mudar radicalmente de abordagem. Não se gere um território sem dono identificado, e a maioria das pessoas, por falta de meios ou por racionalidade económica, não investe na limpeza ou plantação de uma floresta que, pela escala, não lhe dá retorno.

Tal como acontece noutras áreas da vida coletiva, o Estado tem demonstrado não ter capacidade para assegurar uma gestão contínua e eficaz do território. A prova está na execução do Plano Nacional de Ação para a limpeza de matos e floresta, que previa intervir em um milhão de hectares entre 2020 e 2024, mas conseguiu limpar apenas 400 mil, menos de metade da meta, segundo dados da Agência para a Gestão Integrada de Fogos (Público, 12/08/2025). Este histórico mostra que a função do Estado deve ser liderar a aquisição e o emparcelamento das propriedades, mas a gestão operacional deve ser devolvida ao mercado, através de operadores qualificados e com fiscalização rigorosa.

Prevenção como investimento estratégico

O paradigma tem de mudar, do combate para a prevenção estrutural. Uma resposta possível passa pela criação de Espaços Estratégicos para Produção Agrícola ou Florestal, um modelo que articula interesses públicos e privados, gera valor económico e garante uma gestão ativa e diversificada do território.

Estes espaços combinariam áreas agrícolas e florestais de forma planeada, criando um mosaico produtivo que reduz a continuidade do combustível, promove a biodiversidade e maximiza o aproveitamento do solo, de acordo com a sua aptidão natural.

Proposta de execução:

  1. Delimitação das áreas críticas: municípios identificam zonas de risco e abandono, geralmente com múltiplos proprietários e sem gestão ativa.
  2. Aquisição ou expropriação: com apoio da Autoridade Tributária, definem-se preços justos e adquirem-se ou expropriam-se as parcelas.
  3. Emparcelamento e reordenamento: integração das áreas numa gestão única, com rede de acessos, divisão em talhões agrícolas e florestais e zonas de proteção.
  4. Alienação a operadores qualificados e certificados: empresas, cooperativas ou produtores individuais assumem a exploração agrícola e florestal, com critérios de sustentabilidade e diversidade definidos à partida.
  5. Reserva obrigatória de floresta autóctone e habitats naturais: pelo menos 25% da área seria dedicada a espécies de crescimento lento e elevado valor ecológico, garantindo descontinuidade de combustível, proteção do solo e manutenção da biodiversidade.

Benefícios esperados

Redução efetiva do risco de incêndio através da gestão ativa, diversificação de usos e criação de barreiras naturais.

Geração de rendimento agrícola e florestal, potenciando o emprego local e a fixação de população.

Valorização ambiental com conservação de ecossistemas e recuperação de áreas degradadas.

Receitas municipais através da venda, arrendamento ou concessão das áreas reordenadas.

Oportunidades adicionais no mercado de carbono e em certificações ambientais.

Conclusão

Portugal não pode continuar refém do calendário dos incêndios nem das falhas dos meios de combate. Para inverter esta tendência, o Estado, através dos municípios ou de outras entidades, tem de liderar a aquisição ou expropriação das inúmeras propriedades rústicas abandonadas, emparcelá-las e devolver essas áreas reordenadas ao mercado. Mas a liderança pública não chega: é fundamental que associações de produtores, comunidades locais e investidores se envolvam na gestão produtiva e sustentável dessas zonas.

Só com uma aliança sólida entre setor público e privado, ancorada em regras claras e objetivos comuns, será possível transformar o território, reduzir drasticamente o risco de incêndio e criar valor económico e ambiental duradouro. Esta é uma missão que exige visão estratégica e ação concertada.

O combate mais eficaz aos incêndios não se faz apenas com mais meios aéreos ou mais bombeiros no pico do verão, faz-se sobretudo com planeamento, prevenção e gestão ativa do território. É aí que está a vitória possível nesta guerra.

Continue a ler este artigo no Observador.


Publicado

em

,

por

Etiquetas: