Regadio: Gestão ou Governança? – António Campeã da Mota

Foi durante os anos oitenta que, a nível mundial, começou a ganhar importância o debate generalizado sobre os problemas que se vinham a detectar na área da gestão dos aproveitamentos hidroagrícolas, passando, quer instituições como o IIMI (International Irrigation Management Institute) ou a ICID (International Comission on Irrigation and Drainage), quer os profissionais do regadio, a dar muito mais atenção aos aspectos institucionais e de desempenho do que propriamente à tecnologia da rega. Carruthers (1987), expressa esse cuidado quando escreve,: “O desenvolvimento do regadio é hoje fundamentalmente uma tarefa de gestão e não de projecto ou de construção …”2 e Horst (1998) dá conta destas preocupações ao afirmar que doravante “… o regadio não deve ser olhado como um assunto puramente técnico, mas que os aspectos humanos e pessoais desempenham um papel importante em todos os problemas encontrados …”3, ou seja, há que cada vez mais compreender a componente sociológica inevitavelmente ligada à gestão do regadio.

A análise dos resultados, por vezes desapontantes, da implementação dos sistemas, traduzidos genericamente por uma baixa eficiência de utilização da água e do solo (área beneficiada), é sem dúvida crucial para encontrar soluções de mudança que garantam que o sistema cumpra os objectivos planeados.

Numa primeira abordagem o foco passou a ser o utilizador e o consequente modelo de envolvimento nas tomadas de decisão do regadio, passando à discussão os aspectos institucionais e organizacionais desse modelo.

Fala-se então de transferência da gestão para os agricultores beneficiários, que assume designações e conceitos diferentes conforme os países que adoptaram programas específicos com este objectivo: “irrigation management transfer” (IMT) na Austrália, “participatory irrigation management” (PIM) na Índia, “turn over” na Indonésia e Filipinas e “post-responsability sistem” ou “responsability contract system” na China. Como facilmente nos apercebemos, à diversidade da designação corresponderá um alcance diferente no envolvimento da organização dos beneficiários.

Assim, a gestão participada adoptada na India refere-se ao envolvimento dos beneficiários nas diferentes etapas do aproveitamento hidroagrícola nomeadamente planeamento, construção e fiscalização das infra-estruturas de regadio, bem como exploração e conservação e ainda a própria avaliação de resultados. Mas não significa que os beneficiários ou as suas organizações tenham o efectivo controlo dessas acções, apenas participam na tomada de decisão.
Pelo contrário, ao falar-se em transferência da gestão do regadio (IMT) pretende-se significar a efectiva transmissão total ou parcial de responsabilidade e autoridade para o exercício daquilo que tem vindo a designar-se por GOVERNANÇA DO REGADIO.

Convém então, de imediato, assentar ideias sobre o significado de Governança já que tem sido frequente a utilização deste termo como sinónimo de “gestão”. Sendo dois conceitos distintos, falta ainda, todavia, uma definição internacionalmente estabilizada.

Alguns autores4 definem Governança de um modo suficientemente alargado e genérico como “um conjunto de interacções públicas ou privadas que permitem resolver os problemas e criar oportunidades sociais, incluindo a formulação de princípios orientadores dessas interacções”. Em abstracto deixa pouca ou nenhuma margem a discordância.
Já o Banco de Desenvolvimento Asiático5 entende Governança como o “modo segundo o qual é exercido o poder na gestão dos recursos … incluindo a responsabilização pelo desempenho económico e financeiro …”

Pela importância institucional refere-se ainda o entendimento da Global Water Partnership que define Governança como “a área de acção dos sistemas político, social, económico e financeiro existentes, que permite desenvolver e gerir os recursos (hídricos) e a prestação de serviços de água dos diferentes sectores da sociedade”.

Pese embora as diversas correntes interpretativas de governança, há tópicos que parecem comuns, o que levou Hassan6 a apresentar um enquadramento conceptual que designou como “Modelo Pentagonal para análise da Governança” que integra as 4 categorias de conceitos cuja combinação determinará o resultado da Governança.

Ao olhar para a figura representativa “do pentágono dos is” não parece difícil perceber que para se alcançar um bom resultado (impacto) seja imprescindível conjugar e determinar claramente todos os outros conceitos de suporte: Quais são os objectivos a alcançar (intenções)? Quais os instrumentos disponíveis e os necessários? Quais as instituições a ter em conta para assegurar a implementação? A definição inequívoca destes “quatro is” é condição base para um bom resultado de governança desde que alicerçados nos pressupostos de transparência e responsabilização (accountability) para o processo de transferência.

Para que os objectivos estratégicos definidos (p. ex. aumento da relação área regada/área beneficiada, melhoria da relação entre a quantidade de água consumida pelas culturas e a quantidade de água mobilizada pelo sistema, bons níveis de fiabilidade, equidade e regularidade) possam ser concretizados em resultados, há que identificar muito bem as políticas, os instrumentos legais e os procedimentos necessários, e sobretudo dar confiança às instituições para se garantir o sucesso desejado para um qualquer aproveitamento hidroagrícola.

Latif, MUHAMAD. e Tariq, JAVAD, reconhecem que em qualquer processo de transferência, “participação” é o conceito base para desenvolver competências nas organizações dos agricultores responsáveis pela gestão. Citando o caso do Paquistão, país que assegura redes de rega colectivas que beneficiam 18 milhões de ha de área cultivada, e no qual tem sido politica governamental reduzir o papel do Estado (por si próprio ou através de Agências Públicas) aumentando consequentemente o papel dos beneficiários.

Em Portugal também se tem sentido um crescente interesse pela gestão dos Aproveitamentos, mas não tanto pela governança do regadio. No final dos anos 90 teorizou-se sobre um novo modelo de gestão global para os aproveitamentos hidroagrícolas, sem que fossem clarificados os objectivos a atingir, tendo sido concretizada em forma de lei no diploma que procedeu à revisão do então regime jurídico.

Passou então a ser possível que entidades públicas ou privadas sem qualquer ligação aos beneficiários pudessem ser concessionários da gestão das infra-estruturas de rega construídas pelo Estado. Tal mudança, aparentemente muito progressista pois dá abertura a novos actores, retirando o exclusivo às Associações de Regantes (e/ou beneficiários) como gestoras dos aproveitamentos, vem contudo ao arrepio não só da tendência mundial, mas também daquilo que tem sido a tradição nacional de gestão dos regadios colectivos de iniciativa estatal que desde 1937 (Lei 1949) remete para as entidades representativas dos beneficiários a competência (ou obrigação) de chamarem a si a exploração e conservação das obras hidroagrícolas.

De igual modo com o Decreto-Lei 86/2002 deixou de ser obrigatório o acordo expresso dos agricultores abrangidos pelas obras dos grupos I e II, acordo este que envolvia a participação em associação de beneficiários com vista à exploração e conservação das obras.

Este aspecto, que havia sido introduzido na designada “Lei de Fomento Hidroagrícola de 82 /Dec.Lei 269/82) como resultado da experiência até então adquirida relativamente às obras de hidráulica agrícola, traduz-se num incompreensível recuo no desejável envolvimento de todos os actores nas responsabilidades decorrentes dos fortes investimentos de toda a sociedade neste tipo de empreendimentos.

Em texto muito claro e bem fundamentado, Dória. F., Macedo V.L., e Pereira L.S., (1980)7, explicitam a necessidade e a importância da participação dos agricultores quer na fase de projecto quer na fase de exploração do perímetro de rega. Para estes autores “… o agricultor não pode pois ser esquecido em matéria de exploração de um perímetro. Para tanto há que procurar formas institucionais que assegurem essa exploração, isto é, todas as intervenções que atinjam os diversos aspectos da exploração … O sucesso da exploração de um empreendimento hidroagrícola passa pela existência de fortes e bem organizadas associações de beneficiários que concretizem a participação organizada dos agricultores e conduzam o apoio à actividade agrícola de regadio”.

Será que este pensamento já não está actual, ou pelo contrário merece desenvolvimento em conformidade com a Directiva Quadro da Água (Europeia) e com a Legislação Nacional dos Recursos Hídricos?

Não valerá a pena reflectir um pouco sobre a Governança do nosso regadio? O leitor o que pensa?

António Campeã da Mota
Engenheiro Agrónomo

 

1 – Por opção do autor o texto está escrito em ortografia pré-acordo

2 – Carruthers, I. 1987. Irrigation under threat: Awarning brief for manegement. Procedings of the Asian Regional Symposium on Irrigation Design for Management, Kandy, Sri Lanka.

3 – Horst, L. 1998. The dilemmas of water division: Considerations and criteria for irrigation system design. Colombo. Sri Lanka. International Water Management Institute

4 – Koiman J, Bavinck M. 2005

5 – Citado por Hassan, Muhammad Mehmood

6 – Hassan, Muhammad Mehmood. Analyzing governance reforms in irrigation. 2011

7 – DGHEA, 1980. Novo Quadro Institucional para o Desenvolvimento Agrícola pelo Regadio. Proposta de Legislação. Gabinete de Apoio aos Perímetros de Rega. Lisboa

Agricultura e Biodiversidade – António Campeã da Mota


Publicado

em

por

Etiquetas: