Caro João Júlio,
Escrevo essencialmente em meu nome, pois para defender os interesses do setor temos associações e outras entidades. As pessoas empenhadas na agricultura biológica, entre outras vertentes ligadas à agroecologia, representam também décadas de esforços para estudar e desenvolver uma agricultura que, ao mesmo tempo que produz alimentos, busca regenerar o ambiente, a vida no solo, a valorização do papel do agricultor na sociedade e ainda, criar alternativas às lógicas culturais que legitimam a degradação ambiental, económica e social em curso. São agricultores, pesquisadores, instituições de ensino.
Fatos isolados, ou evidências científicas descontextualizadas não provam nada nem refletem realidades distintas. A sua atitude para com a ciência é insuficiente para oferecer as respostas que precisamos justamente porque quer reduzir, separar e explicar o todo pelas suas partes, deixando de fora toda a imprevisibilidade das relações. Sendo assim, faltam às suas colagens de opinião uma contextualização clara para que eu possa entender afinal quais são as suas reais intenções. Para questionar a sua conclusão genérica eu o convido a aceder ao website do Rodale Institute que oferece 30 anos de evidências que contradizem as suas. Mas não fiquemos por aqui.
Para começar, não identifico nas suas peças a agricultura biológica que conheço e pratico pelo meu trabalho. Pois por exemplo, e ao contrário do que indica, nós abrimos mão da utilização de pesticidas sintéticos, fertilizantes sintéticos, porque trabalhamos com processos nos quais estes são nocivos. Uma atitude também respaldada pela ciência e que estão presentes mesmo nas referências por si utilizadas. Na minha agricultura planto árvores, faço reconstituição de sebes e bosques, recriando os serviços ecológicos perdidos. Nas áreas cultivadas são intensificados e otimizados processos, policulturas, rotações adequadas e outros que conduzem ao aumento de matéria orgânica, da vida no solo e da fertilidade como comprovam os testes anuais. Um conjunto de estratégias de gestão que podem ser aplicados tanto à propriedade individual, como ao território. Se o que observo como resultado do meu trabalho e de outros colegas é uma melhoria das condições ecológicas gerais, como pode você concluir ser pior para ambiente?
A agricultura biológica tem origens na agroecologia. Esta apoia-se na ciência da biologia, dos sistemas vivos e da complexidade dos processos ecológicos aplicados aos sistemas agrícolas. Quem segue por estes princípios sabe que isto envolve outras práticas, aproximações, aprendizagem permanente e uma variável forte de relação do conhecimento científico com o lugar, com técnicas e tecnologias apropriadas. Reconheço a complexidade da nossa sociedade e da necessidade de muitos níveis de produção e distribuição alimentar, desde a agricultura de proximidade até o agronegócio, e que podem ser organizados tendo a ecologia como referência. Não pode haver lugar para um debate sobre modos de produção se não houver um debate mais amplo sobre toda a cadeia alimentar, questões sociais, de economia e consumo geral.
A agricultura biológica não é imposta à ninguém. É de livre aceitação. Portanto, esta sua insistência em apenas descredibilizar é um ato que tem implicação direta com a minha liberdade e de outros de escolher, experimentar, fazer sentido e promover outros arranjos culturais e económicos. A transição cultural que vivemos produz incongruências e a agricultura biológica não é uma exceção. Também não é o caminho único, mas constituiu-se como uma base comum de entendimento importante para negociar, para promover, para aperfeiçoar relações entre agricultura, sociedade e ecologia.
A ciência não suprime a complexidade das relações humanas, a intuição, a lógica e a subjetividade. Há que celebrar a ciência pela razão que confere para negociarmos, de forma livre, a nossa coexistência. Se observar o cenário todo poderá constatar que a agricultura convencional está a aproximar-se da biológica (como você mesmo indica na sua peça). Ao mesmo tempo, os praticantes do Biológico e outros sistemas não sujeitos a certificação, vão ainda mais fundo na ecologia das suas relações. As suas referências e evidências só provam uma coisa: que agricultura como um todo precisa ser cada vez mais agroecológica. É o caminho. É um processo criativo. Independente das nossas diferenças, rumamos no mesmo sentido, mas você tem sido o tipo que puxa para trás. Apesar do seu esforço, continuarei a trabalhar para unir, conectar, facilitar e cocriar estes processos e valorizar os agricultores e outras formas de estar. Portanto, se nos dá licença, vamos passar.
Denis Kern Hickel, Agricultor Biológico, Ph.D. em Ecological Design Thinking, pesquisador e consultor de sistemas agroecológicos.