Revisão Intercalar da PAC: Uma “revolução” adiada? – Jaime Piçarra

A divulgação das propostas da Comissão Europeia para as negociações do alargamento comunitário durante a Presidência espanhola da União Europeia, relançou o debate sobre a amplitude da revisão intercalar da PAC, pese embora a Comissão tenha defendido nessa altura que os dossiers teriam de ser analisados de forma separada e que o alargamento não deveria contribuir para uma reforma profunda da Política Agrícola Comum. Como referimos numa reflexão anterior – Reforma intercalar da PAC: Para onde vamos?, para além do alargamento e da nova Lei Agrícola dos EUA, é necessário termos em linha de conta os aspectos relativos às negociações da Organização Mundial do Comércio, pelo que o reforço da posição comunitária passará pela consolidação de alianças com outros países, à luz das negociações em 2003.

Será que todos estes condicionalismos irão determinar uma reforma profunda da PAC ou apenas um processo de ajustamento e de reorientação, consolidando as reformas precedentes e preparando o caminho para uma reforma mais profunda no médio e longo-prazo, num horizonte pós-2006?

A resposta a esta nossa questão foi dada, aparentemente, na divulgação oficial das propostas da Comissão sobre a revisão intercalar da PAC (Mid Term Review) que teve lugar no passado mês de Julho. Contrariamente às expectativas iniciais, pese embora não tenhamos ficado surpreendidos se tivermos em linha de conta os “non-papers” e as posições da Comissão nos meses anteriores à adopção da proposta, a Comissão Europeia parece mais apostada numa verdadeira reforma da PAC e não numa mera revisão intercalar – de resto prevista na Cimeira de Berlim, no âmbito da Agenda 2000 – de uma política que consome cerca de metade do orçamento comunitário.

Como integrar os novos países candidatos sem que um dos grandes pilares da construção europeia seja modificado de forma significativa é a questão central. Podemos discutir se o alargamento, previsto para 2004 para um conjunto de 10 países (Chipre, Eslováquia, Eslovénia, Estónia, Hungria, Letónia, Lituânia, Malta, Polónia e República Checa) e, em 2007, alargado à Roménia e Bulgária (a Turquia não tem data prevista) está ou não a ser feito de uma forma precipitada e parece ser unânime que nem a União Europeia se encontra preparada para os receber, nem os países candidatos estão em condições de integrar este exigente e cada vez mais indefinido e indeciso bloco político e económico. Apesar de ainda não ter sido encerrado o dossier mais complicado e que respeita ao sector agrícola, uma vez tomada a decisão política – a assinatura do acordo com os novos países candidatos está prevista para a Primavera de 2003, durante a presidência grega – não é mais possível esconder que esta MTR é feita para integrar os novos países. Por outro lado, é ingénuo e pouco realista, pensar-se que o alargamento não irá ser feito à custa da agricultura, dado o seu peso no orçamento da União Europeia e a importância da agricultura nos países candidatos.

Com o alargamento, a União Europeia passará a ter uma população de 455 milhões de pessoas, dispondo os 10 novos países aderentes de um rendimento médio equivalente a 30% dos actuais Quinze. Por outro lado, de um total de 114 mil milhões de euros de despesas totais da União para 2006, estão previstos 18 mil milhões de euros com o alargamento, ou seja, 16% das despesas da União Europeia contra 3% em 2001 e 9% em 2002. Em termos agrícolas, pese embora o facto dos países candidatos importarem já hoje quantidades de produtos agrícolas que suplantam as suas exportações destes produtos para a União, a superfície agrícola representa cerca de 44% da superfície comunitária e a sua produção agrícola, 30% da produção dos Quinze; os agricultores destes países representam, em média, 17% da população, contra apenas 4.6% dos actuais Estados-membros. Pensamos que estes dados, numa altura em que se repensam o funcionamento das estruturas e o processo de decisão comunitários, são suficientes para dar uma ideia da complexidade e dos desafios do alargamento da União e do seu impacto para o futuro da PAC e, consequentemente, para o nosso país.

Tendo presente que as propostas da MTR foram claramente condicionadas pelo processo do alargamento, importa pois minorar os seus efeitos em Portugal e rentabilizar as medidas potencialmente favoráveis contidas nas propostas da Comissão, as quais visam os seguintes objectivos: a melhoria das perspectivas para o sector agrícola no seu conjunto, o reforço da integração dos futuros Estados-membros, a coerência, a longo prazo, entre os objectivos de política interna e as negociações da Organização Mundial do Comércio e uma política de qualidade, assente nos princípios de segurança alimentar, ambiente e bem-estar animal, em detrimento de uma política de quantidade e que evite a constituição de excedentes. Como garantir todos estes objectivos, mantendo ou reforçando a competitividade da agricultura e do sector agro-alimentar é a grande questão que se deve colocar desde já.

De facto, a proposta da Comissão preconiza uma verdadeira reforma, senão mesmo uma revolução no panorama agrícola europeu, ao avançar com o desligamento das ajudas das produções (ajuda ao rendimento, único, por exploração, num só pagamento, na base de dados históricos), plafonamento das ajudas directas (300 000 euros/exploração mais uma franquia de 5 000 euros até ao limite de 2 UTA), modulação progressiva (redução de 3%/ano das ajudas directas, a partir de 2004, até se atingir um máximo de 20%), set-aside ambiental, baixa suplementar de 5% no preço de intervenção dos cereais com eliminação das majorações mensais e o reforço das ajudas para o desenvolvimento rural (segundo pilar da PAC). As ajudas serão eco-condicionadas, ou seja, ligadas ao cumprimento de regras ambientais, de saúde, bem-estar animal e segurança alimentar, estando previsto um sistema de auditorias agrícolas para os produtores que recebam pagamentos directos superiores a 5 000 euros/ano.

Conhecidas as propostas de Bruxelas, as primeiras reacções foram desde logo de manifesta oposição, ainda que por razões diferentes, da parte de um conjunto de países como a França, Portugal, Espanha, Itália, Grécia, Irlanda, Bélgica, Luxemburgo e Áustria. Pelo contrário, o projecto foi bem acolhido pela Alemanha, Reino Unido, Holanda, Suécia e Dinamarca e alguns deles até referiram que a Comissão deveria ter ido um pouco mais longe…

Antecipando-se à divulgação pública das propostas, o governo português apresentou em Junho a sua contribuição para a revisão intercalar da PAC, num documento intitulado “Portugal: Um Estado-membro fortemente penalizado pelo desequilíbrio dos apoios provenientes do FEOGA-Garantia e que necessita de produzir mais”. Neste documento, Portugal chama a atenção para 3 aspectos fundamentais: o desequilíbrio dos apoios (o nível de apoio proveniente do primeiro pilar da PAC está na origem do enorme desequilíbrio das ajudas à agricultura portuguesa), os factores que geram os desequilíbrios (para Portugal, não estão em causa os diferentes tipos de quotas e apoios existentes na PAC mas o seu nível) e as posições portuguesas (contra a renacionalização da PAC e/ou a supressão do seu carácter protector; a favor do reforço do primeiro pilar relativo a Portugal, de quotas e ajudas unitárias revistas e de uma modulação moderada, obrigatória e uniforme em toda a União). De facto, Portugal recebe 1.4% do total de ajudas do FEOGA, inferior à sua participação no produto agrícola da União Europeia (2.3%). Por outro lado, o nível total de apoio da PAC ao nosso país por UTA (Unidade de Trabalho Agrícola) é o mais baixo de toda a União e, no caso das ajudas directas, o nível de apoio é 5 vezes inferior à média dos Quinze e 11 vezes inferior à dos países que mais recebem por unidade de trabalho. Nesta perspectiva, aceitar as propostas de separação das ajudas das produções (découplage), num país maioritariamente de pequenas explorações em que a produção não é orientada essencialmente para o mercado, em que as ajudas serão consideradas numa base histórica e tendencialmente mais reduzidas, significa cristalizar o nosso atraso estrutural e o nosso nível de subdesenvolvimento. Neste ponto parece que todos estamos de acordo, Ministério e organizações agrícolas e agro-alimentares: Portugal não pode viver sem a PAC mas necessitamos de uma PAC que não desmantele a nossa estrutura produtiva, que tenha possibilidades de aumentar a nossa capacidade produtiva e que, num quadro de uma política não só agrícola mas cada vez mais alimentar, se oriente para a contratualização das produções, integrando toda a Fileira agro-alimentar.

Para a FEFAC (Federação Europeia dos Fabricantes de Alimentos Compostos para Animais), num documento discutido e subscrito pela IACA, a qualidade deve ser considerada como o terceiro pilar da PAC, defendendo-se ainda uma maior fluidez no mercado dos cereais, a promoção das oleoproteaginosas com a denúnicia do acordo de Blair House, invertendo o elevado déficit europeu de proteínas (da ordem dos 75%) e a consolidação das reformas precedentes. O problema das importações de países terceiros é outra prioridade, considerando-se que as importações deverão ter as mesmas regras impostas aos produtos comunitários, de forma a evitar-se distorções de concorrência. A FEFAC considera ainda que as propostas da Comissão são insuficientes para relançar a competitividade da Fileira Pecuária nos mercados europeu e mundial e chama a atenção para o facto da separação das ajudas provocar enormes desequilibrios no mercado e injustiças entre agricultores, pela introdução da separação das ajudas das produções.

Para a FIPA (Federação das Indústrias Portuguesas Agro-Alimentares), a reforma intercalar da PAC, deverá centrar-se em 5 grandes linhas: a política agrícola deve ser igualmente alimentar, sem desmantelar a nossa estrutura produtiva, deve ser coerente com as outras políticas, a agricultura durável não deve pôr em causa a competitividade da indústria, a segurança alimentar não deve ser negociável, tem de ser garantida a necessidade de aprovisionamento à indústria e deve ter-se em linha de conta o princípio da solidariedade financeira, evitando-se a renacionalização da PAC. Deve ainda separar-se a noção da qualidade, enquanto preferência dos consumidores, da qualidade ligada ao processo de fabrico e à segurança alimentar (inocuidade) dos alimentos, pelo que a qualidade deve assumir-se como o terceiro pilar da PAC.

No que respeita às principais organizações agrícolas nacionais, pelos argumentos já referidos e na linha do documento apresentado pelo Governo português, esta revisão da PAC é inaceitável, injusta e perversa, geradora de distorções de concorrência entre agricultores, sobretudo no que respeita à separação das ajudas da produção e à modulação, transformando os produtores em pensionistas da Comissão Europeia.

Entretanto, a IACA, já em Abril deste ano, num memorandum enviado ao Ministro da Agricultura, defendeu que a reforma intercalar da PAC deve consolidar as reformas precedentes – invertendo a actual situação em que Portugal tem sido claramente prejudicado na distribuição das ajudas – deve ainda assegurar o rendimento dos agricultores portugueses com uma reordenação das ajudas para o desenvolvimento rural. Portugal deve apostar na separação de uma agricultura competitiva e empresarial do modelo de uma agricultura multifuncional, no respeito pelo ambiente e bem estar animal. A qualidade deve constituir o terceiro pilar da PAC, defendendo-se uma maior fluidez dos mercados como o dos cereais (diminuição dos preços de intervenção, supressão das majorações mensais, restrições na intervenção) e a criação de condições que permitam uma inversão do elevado déficit europeu das oleo-proteaginosas. O problema das importações de países terceiros deve constituir outra grande prioridade, pelo que os produtos animais provenientes desses países deverão ter as mesmas regras – de produção, bem-estar e segurança – que as que são impostas aos produtos comunitários. Para um país como o nosso, com fracos recursos e dadas as dificuldades no cumprimento dos critérios de convergência, devemos evitar quaisquer tentativas de renacionalização da PAC. Esta tem sido a posição que temos assumido, quer em Portugal, quer em Bruxelas, no âmbito da FEFAC.

Entretanto, na Cimeira de Bruxelas, realizada em 25 de Outubro, confirmou-se que se existe uma política que consegue cristalizar os grandes desafios que se colocam ao funcionamento futuro da construção europeia, é claramente a Política Agrícola Comum. Desta vez, o grande desafio é o alargamento da União Europeia a 10 novos Estados-membros, previsto para 2004 e, como habitualmente, as divergências concentram-se sobre as questões financeiras. As despesas agrícolas absorvem cerca de 45% do orçamento europeu, existindo um só país, a França, que beneficia de 22% da PAC (9.2 mil milhões de euros de um total de 41.5 mil milhões). Segue-se a Espanha, com 15%, a Alemanha (14%), a Itália (13%), o Reino Unido (10%) e a Grécia (6%). Em termos absolutos, a Alemanha assume-se como o principal contribuinte líquido do orçamento comunitário (20 mil milhões de euros num total de 80.7 mil milhões), representando 24.5%, seguida da França (18%) e da Itália (14.5%). Os Quinze estão determinados a prevenir os riscos de explosão dos encargos financeiros, pelo que a reforma urgente da PAC seria o mais aconselhável para aqueles que menos dela beneficiam proporcionalmente, como a Alemanha e o Reino Unido. De resto, segundo os serviços da Comissão, com as propostas de revisão da PAC, sobretudo o desligamento das ajudas da produção e a modulação obrigatória, a União Europeia economizaria cerca de 200 milhões de euros/ano. No entanto, a França, acompanhada por um conjunto de países como Portugal, sempre afirmou que não estaria disposta a alterar as “regras do jogo” antes de 2006.

Tal como noutros dossiers de importância capital para o futuro da União, o eixo Paris-Berlim parece ter funcionado e a França e a Alemanha conseguiram um acordo que impõe uma redução das despesas agrícolas da União Europeia. A Alemanha conseguiu a sua pretensão de congelar, a partir de 2007, as despesas da PAC e o congelamento deverá ser definido com base nas despesas previstas em 2006 – cerca de 45 mil milhões de euros – actualizado em função da inflação. A França, defensor intransigente da PAC actual, aceitou manter os seus mecanismos até 2006, sendo certo que os agricultores receberão menos dinheiro a partir de 2007. A França pretende ainda discutir a retribuição orçamental do Reino Unido que lhe permite recuperar 2/3 da diferença entre o que recebe e o que paga para Bruxelas. Em termos concretos, o grande debate sobre a partilha dos custos do alargamento será adiado para o final do ano e, no que respeita à revisão intercalar da PAC, tudo deverá ficar igualmente “congelado”.

Reagindo ao acordo franco-alemão, o Comissário Fischler já admitiu que poderá reformular a sua proposta para de modulação obrigatória dos pagamentos directos. Quanto à découplage, justifica a sua implementação pela negociações da OMC, pretendendo manter as propostas para o sector do leite e dos cereais, na linha do que foi decidido em Março de 1999, na Cimeira de Berlim. O Comissário afirma ainda que o congelamento das despesas de mercado, para o período 2007 a 2013, ao nível do plafond fixado pela União Europeia a 25 em 2006 (mais uma indexação de 1% ao ano), como ficou acordado na Cimeira de Bruxelas, não permitirá cobrir os custos de todas as medidas previstas.

Apesar de todas as actuais definições, pensamos que as grandes linhas de orientação das propostas da Comissão, serão recuperadas, em parte ou na sua totalidade, ainda que com alguns ajustamentos, para o período pós-2006. Sobretudo as grandes questões, ligadas à separação das ajudas (découplage), a modulação (redução das ajudas directas e canalização para o desenvolvimento rural) ou a eco-condicionalidade (ajudas condicionadas ao ambiente, bem-estar animal e regras de segurança alimentar), tanto mais que as ajudas aos novos Estados-membros são desligadas das produções (embora atríbuidas por superfície agrícola útil), a partir de 2004 (25% das ajudas pagas nos Quinze), valor que aumentará progressivamente até se atingir os 100% em 2013.

É verdade que o sector agrícola necessita de um quadro de estabilidade a médio e longo prazo para delinearmos investimentos e perspectivas de desenvolvimento, o que não tem acontecido nos últimos anos mas seria bom que não perdêssemos de vista que o acordo franco-alemão mais não fez que adiar as soluções e que Portugal se deve preparar, desde já, para essas inevitáveis transformações, invertendo a tendência para continuar a ser o país mais penalizado com os actuais mecanismos da PAC e que necessita de continuar a produzir para manter a agricultura e o tecido agro-alimentar minimamente competitivos.

Por outro lado, atentos a esta realidade, não podemos continuar a ignorar que, muitas vezes, quando falamos em “especificidades da nossa agricultura ou da nossa agro-indústria”, mais não estamos a fazer do que manter estruturas e/ou orientações produtivas que não terão qualquer sentido a partir de 2007. É sabido que a nossa margem de manobra é estreita mas certamente que teremos de alterar mentalidades, culturas empresariais e, seguramente, um novo modelo de cooperação inter-associativa e de ligação com a Administração Pública. Porque a capacidade de organização de um país é essencial para a sua competitividade e afirmação na cena internacional.

Jaime Piçarra
Engenheiro Agrónomo
Assessor da IACA – Associação Portuguesa dos Industriais de Alimentos Compostos para Animais

Reforma Intercalar da PAC: Para onde vamos? – Jaime Piçarra


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