A produção de leite em Portugal vive “endividada, revoltada e desanimada”. Está reduzida a 3713 vacarias, 58% das quais nas ilhas. O maior industrial – a Lactogal – duplicou os lucros em 2021, tem mais de 127 milhões parados no banco e paga mais de cinco milhões por ano aos órgãos sociais. “É um roubo, é imoral, é um escândalo”, dizem os produtores.
Do negócio de milhões gerado todos os anos com a recolha e tratamento de leite em Portugal, sobram tostões para quem alimenta de matéria-prima as cooperativas e a indústria. Fecharam mais de 90% das vacarias nas últimas duas décadas e os donos das que resistem vivem à míngua, numa “revolta permanente”.
A história do declínio do sector do leite em Portugal leva décadas, mas comecemos no dia 9 de Julho de 2012. Em Vila Franca de Xira, a Fenalac — Federação Nacional das Cooperativas de Produtores de Leite apresentava à então ministra da Agricultura, Assunção Cristas, um estudo do impacto que a reforma da PAC (Política Agrícola Comum) pós-2013 teria nas explorações de leite em Portugal.
Foram estudados três cenários. Em suma, se a convergência interna nos pagamentos-base avançasse, as explorações leiteiras passariam a receber 160 euros por hectare/ano (-81% face ao valor à data). E o rendimento por unidade de trabalho cairia 46%, para 5400 euros/ano, o que, segundo a Fenalac, levaria ao “desaparecimento de grande parte dos produtores de leite”, em particular no Entre Douro e Minho e Beira Litoral (cerca de 67% da produção do continente).
No encontro com Cristas, a Fenalac, presidida por Manuel dos Santos Gomes (hoje com 77 anos e ainda presidente da Proleite e administrador da Lactogal), lembrou à governante que havia em Portugal, à data (2012), 8000 produtores de leite, que facturavam cerca de 650 milhões de euros por ano. Tudo no universo de um sector agro-industrial que, no global, valia 1800 milhões e empregava 7200 pessoas.
Justamente em Dezembro de 2020, os produtores de leite no activo já tinham decaído para 4062 (dados do IFAP). Representavam agora pouco mais de metade dos que exerciam em 2012.
Neste estudo de finais de 2020, era lembrado que cada Estado-membro da UE gozaria de liberdade para fasear a convergência das ajudas com vista a atenuar o impacto severo e súbito nos sectores com valores mais altos, “como é claramente o caso do do leite em Portugal”. Em todo o caso, em média, o progressivo nivelamento das ajudas deverá levar a “quebras nos pagamentos totais recebidos pelos produtores de leite” entre “um mínimo de 12% e um máximo de cerca de 70%”, lê-se no documento.
Em Março de 2020, mês em que a pandemia de covid-19 foi declarada pela Organização Mundial de Saúde, a Aprolep – Associação dos Produtores de Leite de Portugal já pedia ajuda ao Governo e à Comissão Europeia, dado o “contexto excepcionalmente dramático” vivido pelos produtores. Estes estavam a receber, em média, “apenas 29,9 cêntimos por quilo de leite”, “cinco cêntimos abaixo da média comunitária” e “o pior preço do leite entre todos os países da União, segundo o Observatório Europeu do Leite”. Valores que “estrangulam os produtores portugueses e nos devem envergonhar a todos”, disse a associação.
Isto, apesar de, do lado do consumo de leite e produtos lácteos, os números terem disparado, também devido ao confinamento das famílias.
As estatísticas do INE de Maio de 2020 eram elucidativas: “A recolha de leite de vaca foi de 172,0 mil toneladas, um aumento de 2,1% (+4,9% em fevereiro). A produção de produtos lácteos aumentou 1,7% (+4,4% em fevereiro), devido à maior produção de leite para consumo (+1,5%), leites acidificados (+7,2%), nata para consumo (+13,9%) e manteiga (+6,5%)”, lia-se no Boletim Mensal da Agricultura e Pescas daquele mês.
Com a crise pandémica a não dar tréguas e com a “prolongada agonia do sector leiteiro” resultante do “aumento brutal do custo das rações, que representam metade das despesas de uma vacaria, para além do aumento dos custos da energia, mão-de-obra e de todos os factores de produção que ocorreram nos últimos anos”, não restou outra solução: centenas de produtores da região Norte puseram-se a caminho. Pararam o trânsito e conduziram os tractores pelas estradas entre Ribeirão (Vila Nova de Famalicão) e a Trofa. Exigiam, segundo a Aprolep, “um preço justo para o leite”.
A distribuição, que diz apoiar a produção nacional, não teve até agora qualquer palavra ou atitude no sentido de nos acudir. Estamos fartos de ver o leite que nos custa tanto produzir ser usado como produto barato para atrair consumidores. Estamos fartos de ver o nosso trabalho desvalorizado
“Fartos de ver o leite barato”
No comunicado distribuído nesse dia, a associação, então liderada por Jorge Oliveira e a que agora preside Jorge Silva, de Alcobaça, punha o dedo na ferida: “A distribuição, que diz apoiar a produção nacional, não teve até agora qualquer palavra ou atitude no sentido de nos acudir. Estamos fartos de ver o leite que nos custa tanto produzir ser usado como produto barato para atrair consumidores. Estamos fartos de ver o nosso trabalho desvalorizado”.
Negando que aquela fosse “uma manifestação contra os supermercados”, a Aprolep lembrou, ainda assim, que “as constantes promoções e guerras de preços estão a matar a produção nacional de leite” em Portugal. E deixou uma pergunta no ar: “Estão as empresas de distribuição disponíveis para actualizar com urgência o preço do leite e produtos lácteos aos seus fornecedores, de modo que seja possível aumentar o preço ao produtor?”
Vendo os produtores revoltados na rua, a ministra da Agricultura, Maria do Céu Antunes, e o então ministro da Economia, Pedro Siza Vieira, não tiveram outro remédio: determinaram, em Setembro de 2021, a criação de uma subcomissão, no âmbito da Plataforma de Acompanhamento das Relações na Cadeia Agro-alimentar (PARCA), para estudar a estrutura de custos e proveitos da cadeia do leite. Os produtores, esses, “estranhamente”, segundo a Aprolep, não integraram essa subcomissão.
O estudo, concluído nos últimos dias de Dezembro, foi divulgado em primeira mão pelo PÚBLICO antes de ser apresentado à PARCA. E arrasou todos os elos da cadeia: produção leiteira, indústria de lacticínios e grande distribuição. E produziu mais um diagnóstico para as estatísticas: entre 2009 e 2019, o efectivo leiteiro no país diminuiu 11,8%. No continente, caiu de 185.645 animais (2009) para 149.727 (2019), embora nos Açores tenha aumentado de 92.381 animais (2009) para 95.385 (2019).
Em número de explorações, segundo a PARCA, “entre 1999 e 2019 houve uma redução muito grande (90,7% no continente e 52,5% nos Açores)”. Passou-se de 27.426 em território continental em 1999 para apenas 5550 em 2019. Nos Açores, a redução foi menos drástica. Ainda assim, de 5119 explorações em 1999 passou-se para 2428 em 2019.
Guerra na Ucrânia: “A tempestade perfeita”
O eclodir da guerra na Ucrânia a 24 de Fevereiro deste ano “compôs a tempestade perfeita”, desabafou ao PÚBLICO um pequeno produtor do Alto Minho. “Nos custos de produção, a diferença é abismal, as rações aumentaram mais de 100%, o gasóleo mais de 50%, os adubos são ao dobro do preço, a electricidade para a ordenhas das vacas e, até, o preço da mão-de-obra dispararam”, explicou. E deu um exemplo “caricato”: “Vou buscar gasóleo para o meu carro ali a Espanha mais barato do que custa o gasóleo agrícola em Portugal…”
A Aprolep emitiu um comunicado no dia a seguir à invasão da Ucrânia pela Rússia. “Os acontecimentos dramáticos da guerra”, como lhe chamou, “vieram agravar a difícil situação dos produtores de leite portugueses, que pagam os custos de produção (rações, adubos e energia) ao mesmo nível dos colegas europeus, mas recebem o pior preço da Europa, 10 cêntimos abaixo da média comunitária”.
“A Ucrânia era o primeiro produtor europeu de adubo azotado. O milho já passa os 300 euros/tonelada e a soja 550 euros/tonelada. Não sabemos sequer que milho haverá para entrega, tendo em conta que a Ucrânia era a principal fornecedora de Portugal, que um navio de cereais foi atingido por um míssil e os portos estão fechados. Tudo isto vai desestabilizar ainda mais o mercado mundial de cereais que já estava em ebulição por causa do aumento de consumo da China e das secas nas regiões produtoras na América do Sul do Norte”, alertou a Associação a 25 de Fevereiro de 2022.
Restam 3713 produtores
Consequência directa dos efeitos económicos da guerra ou não, quem olha atento para as entregas mensais de leite cru de vaca publicadas mensalmente pelo IFAP, o instituto pagador de ajudas e subsídios no âmbito da agricultura, pecuária, pescas e agro-indústria em Portugal, assusta-se: restam 3713 produtores em Portugal (Junho de 2022, último mês com dados disponíveis antes do fecho deste trabalho). Destes, 2172 (mais de 58%) são das ilhas dos Açores e da Madeira.
É certo que o nível de auto-aprovisionamento de produtos lácteos em Portugal está “na ordem de 93%, subindo esse valor para 107,7% no caso do leite”. Mesmo assim, é “essencial que se faça um trabalho interno de reestruturação da fileira, nomeadamente ao nível dos produtores, de modo a promover de forma efectiva a constituição de organizações de produtores com objectivos específicos de fortalecer o papel negocial do produtor de leite cru na cadeia de valor do sector”, lê-se no estudo económico da PARCA.
O PÚBLICO interpelou a Aprolep acerca deste repto. Carlos Neves, secretário-geral, desvaloriza. Lembra que “o sector do leite é um dos mais organizados na agricultura nacional e a maioria dos produtores já estão organizados em organizações de produtores que são as cooperativas e uniões de cooperativas”. Para este responsável e também produtor de leite, o importante é “estudar e reflectir como valorizar mais o leite, acrescentar valor aos produtos lácteos e reduzir custos internos para passar mais valor para o produtor”.
PARCA começou “tarde e mal”
O estudo da PARCA, acrescenta Carlos Neves, veio “demonstrar o que a Aprolep já tinha denunciado”, ou seja, “que o preço do leite em Portugal esteve cinco cêntimos/litro abaixo da média da UE em 2021 e que houve uma redução de 90% no número de vacarias ao longo de uma década (entre 2009 e 2019)”. Ainda assim, diz, “os produtores resistem”, apesar de serem “cada vez em menor número” e estarem “endividados, revoltados e desanimados”.
O secretário-geral da associação acusa ainda a subcomissão da PARCA de ter começado “tarde e mal, ao ignorar a Aprolep”. E, “mais grave”, de ter elaborado o estudo económico com base em “dados desactualizados, anteriores aos aumentos dos custos de produção registados ao longo de 2021 e intensificados em 2022 em consequência da guerra na Ucrânia”.
Carlos Neves aponta o dedo ao Ministério da Agricultura, que “devia ter tomado decisões após a divulgação do estudo”. Porém, a Aprolep não se apercebeu “de que algo tenha sido feito”. Por isso, adverte: o trabalho da subcomissão deveria “ter continuado”.
O presidente da Fenalac e da Comfagri — Confederação Nacional das Cooperativas Agrícolas e do Crédito Agrícola de Portugal, Idalino Leão, destaca, do relatório, “questões como a avaliação da legislação nacional que impede as práticas desleais no comércio, reforçando a garantia de que os preços praticados no consumidor permitem a adequação da remuneração do leite ao produtor, tanto mais que tal foi reconhecido por todos como um problema fulcral na presente conjuntura”. Acima de tudo, diz Leão, “importa que exista uma articulação a nível nacional no sentido de promover a melhor remuneração do leite aos produtores, tanto dos Açores como do continente”, sendo “fundamental que se encare um sector leiteiro nacional como um todo”.
“É muito fácil acusar a distribuição”
A APED – Associação Portuguesa das Empresas de Distribuição também foi interpelada pelo PÚBLICO acerca do estudo da PARCA, que acusa a grande distribuição de comprometer a viabilidade económica do sector do leite.
Gonçalo Lobo Xavier, secretário-geral, bate o pé. Diz que “a APED […]
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A crise do leite e os salários milionários da lactogal – Carlos Neves