A carne bovina portuguesa goza de fraca fama, mas a história pode estar mal contada. As raças autóctones do Norte do país fazem furor entre os melhores assadores do mundo, em particular a mais selvagem de todas. Fomos às montanhas do Alvão saber o que é que a Maronesa tem. E porque é que ela não chega às nossas mesas.
Quando os bois Preto e Amarelo, parelha nascida e criada na Serra do Alvão, foram vendidos a um negociante de gado, poucos antecipavam que eles acabariam num dos melhores restaurantes do mundo. Três anos e meio depois, o Asador Etxebarri haveria de comprar a sua carne e servi-la no menu de degustação, destituindo a habitual chuleta de Rubia Galega.
O homem que criou os animais, Daniel Gaspar, ficou a saber do destino pelo Eggas. “Não sabia”, admitiu. Estabelecido na aldeia do Bobal, a 900 metros de altitude, vendeu a carne a um criador. Que foi identificado por um intermediário. Que contactou um distribuidor espanhol. Que vendeu a Victor Arguinzoniz. Victor Arguinzoniz foi eleito este ano o melhor chef do mundo pelos seus pares, no The World’s 50 Best Restaurants. Entre as virtudes do proprietário do Etxebarri, destacadas por ocasião da atribuição do prémio, estão o domínio da grelha e o uso de matéria-prima de excelência.
Ora, Daniel Gaspar sabe de concursos, mas apenas dos de bois maroneses. Nascido numa família de produtores, tem no currículo vários prémios em feiras de gado. “Tenho lá mais de 200 taças em casa. Este fim-de-semana vou ver se ganho outra, em Mondim”, diz. Os concursos são uma montra para os olheiros, comerciantes em busca de animais apurados.
No caso de Preto e do Amarelo, Daniel percebeu cedo que seriam excepcionais. “Eram fortes, direitos de lombo, com todas as características da raça”, recorda. Mal nasceram, tratou de os treinar e preparar para serem bois de carne. Com um ano de idade, capou-os e educou-os para que ficassem mais mansos, pondo-os logo a trabalhar a terra. “É preciso perder muito tempo a ensiná-los. Se os bois não forem amansados e ensinados ninguém faz nada deles”.
Com a castração, a segregação de testosterona é bloqueada e o corpo dos animais torna-se assim mais suave e saboroso, dizem os especialistas. A diferença na venda entre um touro e um boi capado chega a ser cinco vezes superior, em termos de preço . A carcaça de touro pode valer 2€/kg, no retalho, enquanto a de boi valerá 10€/kg.
Já a discussão sobre se a carne de boi é melhor do que a de vaca é antiga e não há certezas absolutas. Em todo o caso, entre os apreciadores há a convicção de que os bois criados para carne são especiais, nem que seja pelo tamanho das suas costeletas.
Sucede que os portugueses não pagam o investimento em bois velhos. Pelo que, a partir de um ou dois anos de idade, torna-se oneroso continuar a alimentá-los. O preço habitualmente pago pela Cooperativa Agrícola de Vila Real, onde vai parar a maioria da carne Maronesa da região de Trás-os-Montes, não chega para os custos de produção de vacas e bois adultos.
Ou se tem contactos com negociantes premium — como sucedeu com Daniel —, e garantias de que pagarão o preço justo, ou então o melhor é apostar em vender à Cooperativa assim que deixam de mamar. A maioria segue esta última via — e esta é uma das razões pelas quais é tão difícil encontrar nos talhos e nos restaurantes portugueses carne de bois adultos Maroneses e de outras raças certificadas autóctones.
Uma pena. Nada contra a vitela e o novilho. Mas a verdade é que os bovinos adultos, devidamente alimentados e maturados, conseguem uma profundidade de sabor, uma infiltração de gordura intramuscular, que os vitelos não atingem.
Com a moda da maturação, feita com animais adultos, muita gente começou a ter esta noção em Portugal — mas, mesmo nas casas mais reputadas de Lisboa e do Porto, é difícil termos acesso a raças autóctones portuguesas, de criação tradicional, como são as Maronesas do Alvão e do Marão.
Porquê? Porque Espanha paga melhor. Porque Espanha antecipa-se.
Os dois bois Maroneses de Daniel foram vendidos por mil euros cada um, valor já bem acima da média. “Não costumam passar os 500, 600 euros”, garante Daniel. Passados três anos e meio, quando Espanha os comprou, o preço subiu para sete mil euros cada um — um recorde mundial, de acordo com especialistas.
Campeãs sem pátria
Em Julho de 2020, deu-se um acontecimento importante para a gastronomia portuguesa, magnificamente desprezado pela nação. A carne de uma Maronesa ganhou o primeiro campeonato do mundo de raças autóctones, realizado em Madrid. O assunto passou praticamente sem notícia, para cá do Marão. Nem um comunicado da Confederação de Agricultores de Portugal. Nem uma menção blogueira. Nem um chef patriota a bater no peito. Nenhuma nota da Academia de Gastronomia Portuguesa.
O concurso começara dois anos antes. Numa quinta da Galiza, junto ao Cabo Finisterra, reuniram-se 13 das mais nobres raças de carne bovina do mundo. As contendoras foram a Angus Aberdeen, a Wagyu, a Simmental, a Galloway, a Hereford, a Dexter, a Highland, a Cachena, a Limiana, a Sayaguesa, a Frisona, a Rubia Gallega e, claro, a Maronesa. Os animais pastaram aí livremente, sendo suplementados com milho autóctone galego, em idênticas condições de vida e alimento.
No final desse período, por fim, vieram as provas e avaliações. Primeiro a estética, aquilo a que os organizadores chamaram “uma degustação visual para calibrar parâmetros como coloração, infiltração de gordura, tamanho e conformação”. O júri era formado por especialistas de todo o mundo, entre eles o chefe da equipa italiana de talhantes, Fabrizio Gasparrini, campeão do mundo da especialidade (sim, existe). A Maronesa haveria de sair triunfante logo nesse primeiro embate, elogiando-se “o cromatismo, a gordura e a anatomia do dorso”.
Meteu-se então a pandemia pelo meio e a derradeira prova foi adiada. Mas o júri voltaria a reunir para a decisão final, relativa ao paladar. A Maronesa bateria outra vez a concorrência, com as primeiras costeletas a seguirem directamente para o Asador Etxebarri. A partir daí o restaurante de Axpe, na Biscaia, começaria a fornecer-se desta raça, destituindo a “Rubia Galega” — considerada a rainha da chuleta.
Por trás do concurso esteve uma das empresas de venda de carne premium espanholas. Com sede em Madrid e quinta na Galiza, foi a Discarlux quem organizou tudo. O dono da empresa, José Portas, é um apaixonado pelo Real Madrid (aparece em fotos no Facebook em jantares com Luís Figo e Roberto Carlos) e pela carne certificada. A sua entrada no sector dos talhos e da distribuição aconteceu depois de ter visto o documentário Steak Revolution.
No filme, o realizador e protagonista Frank Ribière faz-se acompanhar pelo açougueiro parisiense Yves-Marie Le Bourdonnec. Juntos, correm o mundo em busca da carne de vaca mais extraordinária. Da produção de bife Kobe do Japão, à Pampas da Argentina ou à Angus da Escócia, provam todos os grandes terroirs bovinos.
No final, a carne mais elogiada acaba por ser encontrada no lugar de Jiménez de Jamuz, na província de Leão, em Espanha — a apenas uma hora e meia da fronteira com Portugal, a norte de Bragança. Foi no El Capricho que a dupla encontrou o paraíso carnívoro.
Na verdade, o restaurante galego é mais do que um restaurante. Quem lá vai comer, pode pernoitar no hotel e à saída pode abastecer-se no talho. Junto às instalações, pastam dezenas de animais, quase todos bois de carne, que acabarão depois na mesa, seja num carpaccio de entrecôte maturado, seja numa língua curada, seja num prato de tripas ou em costeletas grelhadas em brasa de carvalho — a pièce de résistance.
Quer Frank Ribière, quer o proprietário do El Capricho, José Gordon, partilham no documentário a mesma ideia sobre a carne de qualidade. Tem tudo a ver com duas coisas — dizem. A primeira é a quantidade de amor e cuidado posto na produção dos animais: bovinos bem alimentados, tranquilos e felizes dão melhor carne. O segundo factor decorre de serem bichos rústicos, “que sobreviveram às tendências actuais” e “cruzamentos de laboratório” e foram criados às mãos de pessoas “com respeito pelo seu carácter e ritmo, que partilham com eles a casa e a comida”.
O que não se diz, nem no filme, nem na promoção do El Capricho, é que há uma possibilidade grande de a carne provada por Frank Ribière e o seu companheiro Yves-Marie Le Bourdonnec, aquando da visita ao El Capricho, ter vindo de Portugal.
Do amor à Maronesa
Avelino Rego salta o ribeiro junto ao moinho de água da família, com a agilidade de uma criança. Põe os pés sem hesitar nas pedras periclitantes sobre a água, seguindo os passos da manada. Tem 37 anos de idade, mas ali é outra vez o pequeno pastor da aldeia de Lamas, enviado pelo pai para a montanha com o rebanho de ovelhas, quando a maioria das crianças entrava na escola primária. Hoje, os ovinos foram substituídos pelas vacas. “As Maronesas hão-de estar mais à frente”, indica.
Estamos em pleno planalto da Serra do Alvão, acima de nós as fragas do pico do Costa Carvalho, em baixo um campo verdejante estendendo-se para noroeste. “Ei-las!”, atira, apontando com a cana comprida para os pontinhos negros ao fundo movimentando-se lânguidos em contraste com o tapete de erva, um lameiro saído de um postal bucólico.
O caminho de casa dos pais até ao lameiro, onde os animais vão pastar, perfaz uns 30 minutos a andar pela serra, entre tufos de carqueja e tojos. As vacas de Avelino cumprem-no todos os dias, numa rotina rigorosa mas livre. Ninguém as guia, não há vedações, nem cães, nem pastores. As movimentações pela serra ocorrem quando uma delas se aborrece de estar no mesmo sítio ou quando se acaba o pasto. “Há sempre uma líder que encaminha as outras”, explica Avelino, um dos mais apaixonados dinamizadores da produção transmontana de Maronesa.
Já dentro do lameiro, percebemos melhor a fisionomia da raça. Tinha ouvido falar da sua sageza, agilidade e temperamento arisco. Seja pela cor escura do pelo, seja pelo desenho dos cornos, lembram touros bravos. Uma Maronesa com mau feitio, ao sentir que o seu espaço está a ser ocupado, pode investir. Mais ainda se for boi. “Os bois já fizeram muitos estragos. É preciso saber lidar com eles”. Na maioria das vezes, todavia, é só um chega para lá. Na zona de Vila Pouca de Aguiar, do outro lado da Serra do Alvão, são conhecidos relatos de perseguições a caminhantes, que não terão ganho para o susto.
Este instinto é sobretudo de defesa. “Aqui há lobos. Todas as semanas temos sinais da sua presença”. As Maronesas, soltas na serra o dia todo, confrontam-se regularmente com eles. Quando uma matilha ataca, fazem um círculo com os cornos virados para fora.
Avelino respeita o seu peso e a sua força, sem as temer. Às tantas, diz para me aproximar de uma delas. Quer tirar-me uma fotografia. Vai acalmando uma vaca com umas festinhas na zona do rabo, ao mesmo tempo que a chama, tal qual um bebé. “Ramalha, Ramalhinha, oh Ramalhinha”. O bicho parece dócil, mas tem os cornos afiados. “Se ela der um passo atrás, tem de parar e recuar. Significa que não quer que se aproxime”. Avanço lentamente. Avelino está agora junto à cabeça do bicho. “Aproxime-se e segure no corno com força. Ela tem de sentir firmeza”. Avelino afasta-se, tomando a minha máquina fotográfica. “Agora é a sua vez de ser fotografado”. Ramalha cumpre, serena, o papel de modelo.
Minutos depois, tenho outra prova impressiva da experiência e paixão de Avelino pelo pastoreio. Pergunto quantas cabeças tem e ele responde de imediato: 34. “Quer ver?”. A cabeça vai rodando da esquerda para a direita, varrendo o campo sem uma hesitação. Em cinco segundos, está feita a contabilidade. “Só estou a contar 32, mas são 34, tenho a certeza.” Não duvido.
Avelino dá nomes a todas elas. A mim, parecem-me indistintas, tirando uma ou outra com o pelo mais claro. Mas ele reconhece-as a todas. A sua relação com os bichos é diferente da do produtor tradicional. Nunca lhes bateu com a vara, não lhes dá ração industrial nem antibióticos. Na verdade, pouco fala da carne ou leite ou outros derivados. Interessa-lhe sobretudo o seu bem estar e a preservação da paisagem de montanha, duas coisas que andam ligadas.
De volta à aldeia, convida-me para almoçar em casa de sua mãe. A ementa era para ser peixe, mas por especial deferência com o convidado, aparece sobre a mesa uma costeleta de vitela Maronesa. “É muito raro comermos carne. A carne é um luxo destinado aos outros”, há-de explicar. A acompanhar a proteína, a saborosíssima batata Kennebec também de produção própria (com que Avelino já ganhou um concurso), e grelos da horta, mais vinho tinto da Adega Cooperativa de Valpaços.
Aproveito um momento em que vai à casa de banho para falar com sua mãe. A mãe diz que ficou feliz por ele ir para fora e tirar “o curso”. No regresso, confronto-o com a sua formação, o que parece envergonhá-lo. “Foi minha mãe quem lhe disse que tirei um curso?!” Depois, justifica-se. “Sim, tirei um curso de Informática. Acabei a trabalhar numa multinacional, a Glintt.” A Glintt é uma empresa de consultoria e serviços tecnológicos. Entre as tarefas de Avelino estava a de agregar a informação do processo hospitalar, “transformando-a em indicadores de gestão para serem utilizados como ferramentas de apoio à decisão”.
Avelino acabou por perceber que não era esse o caminho que queria para si. Há sete anos, decidiu regressar à Terra Fria e fazer alguma coisa por ela. Já não havia ovelhas, mas havia um grupo de pessoas que queria fazer do gado Maronês o esteio da preservação do habitat da montanha do Alvão e das suas comunidades. A Maronesa trouxe-o de volta para a serra, cada vez mais despovoada devido à emigração para França, cada vez mais à mercê dos fogos florestais, décadas de incêndios que deixaram os solos do planalto magros.
Foi a partir desta paixão, partilhada com outros produtores ancestrais, que nasceria a Terra Maronesa. A associação, com sede em Vila Pouca de Aguiar, irrompeu com estrondo na imprensa do país e nas redes sociais em 2019, através de uma carta aberta ao reitor da Universidade de Coimbra. Amílcar Falcão acabava de ordenar o fim da carne de vaca nas cantinas, alegando questões ambientais.
O texto da Terra Maronesa, que teve centenas de partilhas no Facebook, ensinava ao reitor a diferença entre “os novilhos engordados a milho e soja ou nas pastagens da América do Sul” e “o gado Maronês criado pelas gentes da Serra do Alvão e montanhas limítrofes”.
Os primeiros, tinham “custos ambientais devastadores” — devido aos gases de estufa; à destruição da floresta tropical amazónica; à aplicação de quantidades maciças de fertilizantes fosfatados (um recurso não renovável); e à emissão de CO2 de origem fóssil através do transporte de animais e carnes por via terreste a longas distâncias e à travessia do Atlântico em navios ou aviões com sistemas frigoríficos.
O gado Maronês, por sua vez — lia-se na carta — ajudava a desenvolver “um sistema inovador”, onde a maior parte dos alimentos animais é gerado no monte ou nos lameiros, um habitat Rede Natura 2000; onde as vacas vivem ao ar livre e expressam sem restrições comportamentos inatos jamais silenciados pela domesticação; onde reaprenderam a defender-se do lobo, a escolher os rebentos mais nutritivos e a abrigarem-se das intempéries.
As mudanças no território que a presença de manadas está a operar são, hoje, evidentes. As vacas livres do Noroeste estão a fazer renascer lameiros, que no Verão dão o feno que as alimentará no Inverno, quando descem da montanha para se abrigar. As fragas da serra continuam a ter pouca matéria orgânica, devido a anos de devastação causada por incêndios, mas o regresso da pastorícia está a tornar a terra mais fértil.
Em cima da Maronesa, herdeira dos auroques ancestrais, raça que sempre viveu lado a lado com as gentes do Alvão e do Marão, há ganhos ambientais, culturais e turísticos. Mas também gastronómicos.
Os Bois da Gucci e do El Capricho
Mario é amansador de bois, profissão que está a desaparecer em Espanha mas que é essencial para a produção de carne premium. O seu talho fica em El Barco de Valdeorras, no concelho de Ourense, a uma hora e meia de carro de Chaves. A loja é apenas a sua mais recente área de negócio.
As suas Barrosãs já figuraram na série Doctor Who, mas também em anúncios publicitários da Gucci e no Big Brother. Quando Mario é citado na imprensa, os jornalistas costumam referir-se às suas parelhas como sendo galegas. Mas na verdade vieram do Sul. “Portugal é dos países do mundo que tem melhor carne”, admite o talhante.
Sendo hoje um dos ganadeiros mais importantes da Galiza, Mario tem um talento especial para descobrir bois nas aldeias mais recônditas do Minho e de Trás-os-Montes. “Só este ano, já daí trouxe uns 200 bovinos”, diz, sem hesitar. O investimento justifica-se pela qualidade genética das raças autóctones portuguesas, mas também pela forma tradicional como os portugueses as criam. “As aldeias portuguesas ainda estão vivas. A alimentação não é tão industrializada como aqui. A Galiza é muito forte no marketing, a vender a marca — seja peixe, seja carne — mas atrás da marca há produtos que não são tão bons. Há muita mentira”.
Foi Mario quem recrutou e entregou à Discarlux as duas Maronesas que venceram o concurso de melhor carne do mundo, em 2021, ambas compradas a um produtor da zona de Vila Pouca de Aguiar. E foi Mario quem, no ano passado, intermediou a venda dos dois bois mais caros de sempre, também para a Discarlux — os tais de Daniel Gaspar, com origem no Bobal, em plena Serra do Alvão.
Este negócio, em particular, mostra bem a dupla realidade que existe em Espanha e Portugal, no comércio da carne. Daniel criou e amansou os dois bois, até aos dois anos de idade. Depois vendeu-os por 2000 euros a Xico, nome pelo qual todos no meio tratam Francisco Costa. Xico, criador afamado de Valverde, perto de Vidago, tratou de os engordar e afinar, alimentando-os a abóbora, batata caseira, papas de vinho e trigo, aveia, beterraba e milho das suas terras, durante três anos e meio.
Quando a parelha tinha cinco anos e meio de idade, Mario descobriu-lhe os bichos e propôs a venda à Discarlux. José Portas, o administrador, deslocou-se à casa de Xico para fazer fotos e vídeos para comunicar nas redes sociais e na imprensa e consumar a operação. O jornal Faro de Vigo haveria de titular: “Preto e Amarelo, os bois de raça maronesa mais caros do mundo vêm para a Galiza”.
Com a operação, Francisco Costa teve uma rentabilidade de 12 mil euros, depois da venda a José Portas, fora custos com alimentação. Isto significa 4000 mil euros por cada ano em que tratou dos animais. Parece muito, mas não é. Os dois animais seguiram para a Discarlux com 1280 e 1150 quilos de peso, cada um, e daqui para restaurantes que facturam mais de 150 euros por cabeça.
Há duas semanas, estive na aldeia de Valverde, à procura de Xico. A aldeia tem o ritmo do campo e uma paixão por diospireiros, nesta época carregados de fruta. Xico vive numa casa abarracada ao fundo de um beco, paredes meias com umas ruínas. Não vi nenhum vestígio de conforto, nem aposentos dignos de um rei do gado.
Tentei combinar um encontro com ele, e chegámos a agendar para o meio-dia (“Apareça lá, bebemos um copo”, dissera-me nessa manhã, por telefone). Mas acabou por não aparecer. “Estou a entregar uns bois, ainda vou demorar”. Ao final de três horas de espera — e depois de um último telefonema infrutífero— acabei por desistir. Xico parecia não ter qualquer interesse em divulgar o seu trabalho, nem os seus animais.
Mario Nogueira, contudo, conhece bem Xico. “Ele cria os bois com grande paixão”. Os seus animais saem dali já prontos para entrar nas melhores cozinhas da Europa. No caso da parelha Preto e Amarelo, segundo a Discarlux, acabaram no Etxebarri, mas também noutras cozinhas afamadas de Espanha, França, Suécia e Itália.
De acordo com Mario, a carcaça de um animal de raça certificada portuguesa chega a valores altos, na venda aos restaurantes. No El Capricho, quer o gado Maronês, mas também a Barrosã — podem valer 9 euros por quilo, vendidos à carcaça inteira.
Ou seja, um bicho com 1000 quilos valerá 9 mil euros. O valor pode subir exponencialmente caso sejam bois excepcionais. O dono do El Capricho, José Gordon, terá comprado a uma empresa espanhola, em 2019, uma Rubia Galega, também criada em Portugal, por 35 mil euros. O bicho está no livro do Guiness como tendo a carcaça mais pesada de sempre, mais de duas toneladas — mas, novamente, o assunto só parece ter sido notícia em Espanha —, que voltou a tomar para si os louros.
Cortados às peças e cozinhados, a rentabilidade dos bois torna-se mais difícil de perceber. Mas em todo o caso, um chuletón de um quilo, no El Capricho, cobra-se por 120€, se for premium; se for da selecção do proprietário, sobe para 160€. Fazendo conta a 13 chuletóns por animal, isto dará, só em costeletas, 1560€ e 2080€, respectivamente.
Manuel Nogueira não tem dúvidas de que há um desnível no pagamento da carne em Portugal e em Espanha. “Uma das coisas que não entendo é a razão porque se compra uma vaca em Portugal e vale 4 e a mesma vaca em Espanha vale 7, quando o trabalho foi todo feito em Portugal. Não entendo”, diz, referindo-se a uma injustiça que tem prejudicado os produtores portugueses.
Uma prova impressiva de que o Minho e Trás-os-Montes se tornaram regiões de recrutamento em massa de bovinos premium para Espanha pode ver-se nos próprios campos de pastoreio do El Capricho. Manuel fala em, “pelo menos, 90 Barrosãs, mas também haverá muitas Maronesas e Minhotas”.
A revelação deixa-me perplexo. Há muitos anos que oiço falar no El Capricho. Há muitos anos que oiço dizer que a carne de vaca portuguesa ou é fraca ou, no caso das raças certificadas, existe em quantidades insignificantes.
Mas, afinal, não é assim. O que acontece é que há um tesouro genético nas nossas raças a que não temos dado valor. Espanha, por outro lado, está disposta a apostar nesses animais rústicos e a pagar um preço elevado — depois de ele passar por várias mãos.
Já vimos esta história com outra matéria-prima nacional, como o porco de raça alentejana. Os espanhóis vêm cá buscá-lo, trabalham-no bem, fazem marca, prosperam, vendem caro. Quem cria “o porco preto”, todavia, não muda de vida. O mesmo se passa com a Maronesa.
Avelino Rego pode amar as suas vacas como ninguém. Daniel Gaspar pode continuar a ganhar concursos de bois. Xico pode dar-lhes comida gourmet durante anos. E a carne Maronesa pode continuar a ganhar campeonatos do mundo. Nada disso parece suficiente para mudar a relação de forças Ibérica.
O fillet mignon, esse, estará sempre para lá do Marão.
O artigo foi publicado originalmente em Eggas.