Simplificação e complexidade

Um dia destes fui a uma sessão organizada pela Biond.

Nessa sessão vendi o meu peixe, falando de três acções que me parecem minimamente relevantes:

1) Alterar o modelo dos briefings da protecção civil, de modo a que se fale de fogos e não apenas dos meios associados aos fogos, para ver se aumenta a nossa literacia sobre o fogo (uma proposta menor);

2) Alterar a doutrina de supressão de incêndios florestais, separando as funções de protecção civil das funções de combate ao fogo florestal, profissionalizando o combate aos incêndios florestais (uma proposta instrumental para que seja possível aproveitar as oportunidades de combate aos menos de 1% dos incêndios florestais que fogem do controlo e são responsáveis por mais de 90% da área ardida e a quase totalidade das grandes perdas, incluindo perdas de vidas);

3) Pagar parcialmente a gestão de combustíveis finos a quem já o faz hoje, com o objectivo de alinhar os incentivos públicos com o interesse dos gestores, reforçando as fileiras que gerem combustiveis com o objectivo de as tornar mais atractivas e se aumentar a área do país em que é feita gestão de combustíveis finos (a proposta estruturante, uma péssima proposta que tem apenas a qualidade de ser melhor e dar mais resultados em menos tempo que todas as outras que conheço).

Mais tarde, na mesma sessão, o Senhor Secretário de Estado das Florestas falou do Plano de Acção Florestal (que comentei na altura em que foi apresentado) que falou das 150 acções que ele contém (não consigo identificar nenhuma porque sendo 150, nenhuma é verdadeiramente relevante, por mais que estejam todas certas e resultem de uma consulta alargada aos principais agentes do sector).

O complexidade das propostas de intervenção contrasta com a simplificação de problemas complexos que domina a discussão das questões de gestão da paisagem.

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Estes dois bonecos são tirados de uma publicação do Instituto da Conservação da Natureza e Florestas que é um bom exemplo da simplificação de questões complexas.

O ICNF, no seu afã ideológico, quer falar da importância de galerias ripícolas, que é realmente grande, mas em vez de se limitar a falar com base no conhecimento existente, resolveu aproveitar a atenção dedicada aos incêndios para, simplificando um assunto complexo, sugerir que as galerias ripícolas (incluindo as espécies que a constituem) travam, ou pelo menos resistem, ao fogo.

O que não faltam são fotografias a demonstrar como galerias ripícolas funcionam como autênticos canais de penetração do fogo em áreas florestais intensamente geridas, contrariando o que é dito pelo ICNF.

Sim, é verdade que grandes galerias ripícolas, em vales relativamente largos, com linhas de água permanente, se podem comportar como o descrito pelo ICNF, mas é a fisiografia que, em primeiro lugar, permite a instalação destas galerias ripícolas e, em segundo lugar, pela humidade que concentra (independentemente das espécies que ocupam vales desse tipo), permitem um comportamente diferente do fogo.

O que manifestamente não tem interesse nenhum é sugerir que nas encostas queimadas que se vê nas fotografias, ou noutro tipo de vales, seria possível ter o mesmo tipo de ocupação do solo, com o mesmo efeito sobre o comportamento do fogo.

Olhemos agora para outros bonecos.

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O que vemos no primeiro boneco é uma zona de carvalho negral (são bosquetes de carvalhal que vão ocupando as zonas sem gestão ou com pouca gestão, sendo compatíveis com uma gestão de baixa intensidade, com gado), que ardeu, com pouca intensidade (não por serem carvalhos, mas porque na altura do fogo as condições de humidade da vegetação eram pouco favoráveis ao fogo e as condições meteorológicas não eram extremas), nos princípios de Julho e onde já são visíveis os sinais de recuperação, ainda antes da próxima Primavera os carvalhos começaram a rebentar (se é bom rebentarem antes do Inverno ou não, o tempo dirá).

O que vemos no segundo e terceiro bonecos são paisagens que frequentemente são referidas como o ideal a atingir com os programas de transformação da paisagem e outras fantasias, isto é, paisagens em mosaico, com presença de algum gado, com exploração de alguns retalhos, neste caso, mais olivais que vinhas, mas noutras zonas do país que arderam neste Agosto, eram mais vinhas, sobreiros, azinheiras ou castanheiros que olivais, que o resultado é o mesmo.

Uma boa parte do que ardeu este ano eram paisagens assim, ou estruturalmente semelhantes, que contrastam com o que vemos no último boneco, um olival manifestamente gerido que, se tiver dimensão pode defender-se minimanente dos prejuízos causados pelo fogo, mas se for um retalho no meio de paisagens como as que estão nos bonecos dois e três, com pouca ou nenhuma gestão, sofrerá o impacto de fogos intensos que surjam (e surgirão sempre, é uma questão de tempo).

A complexidade das propostas que partem de diagnósticos que são simplificações acabam por mascarar o essencial: o que distingue as paisagens em que temos controlo sobre o fogo (ou sobre a expansão de espécies invasoras lenhosas, como acontece em grande parte da Beira Litoral) daquelas em que o fogo lavra (ou as invasoras lenhosas aproveitam as oportunidades sem oposição) é a intensidade da gestão da paisagem.

Não, não é de acção florestal que se trata, é de compreender que, não havendo economia que faça a gestão das paisagens que continuamos a perseguir difundindo mitos sobre o passado (seja o passado mais recente das paisagens de mosaico lindíssimas, cheias de gente miserável, seja o passado das matas de espécies autóctones a perder de vista), só nos resta mesmo alinhar os incentivos que os contribuintes estão dispostos a pagar para ganhar controlo sobre o fogo, com a economia que existe de facto.

O desgraçado do gestor do olival que está no último boneco vai abandonar a gestão quando um fogo de Verão, mesmo que rodeie o seu olival, dessecar as suas árvores.

Até esse momento, parece-me mais que justo pagar-lhe parcialmente essa gestão, porque é justo, em primeiro lugar, e porque se a actividade for mais rentável, talvez mais alguém se interesse por a manter, alargando a área que um combate profissionalizado e conhecedor do terreno pode usar como oportunidade para gerir o fogo, seja para ancorar fogos de Inverno que limitem os estragos de fogos de Verão, seja para gerir um incêndio que ocorra por ali.

É fácil, é barato, não dá milhões, mas provavelmente poupa milhões.

O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.


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