Sobre tangas

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Estou a ler o livro de João Miguel Tavares (de quem gosto) sobre Sócrates e acho que me ajuda a perceber algumas das outras coisas que escreve João Miguel Tavares: traumatizado pelo péssimo escrutínio que a os seus colegas da imprensa fizeram sobre Sócrates, João Miguel Tavares tem medo que todos os outros políticos lhe passem a perna e, consequentemente, ao mínimo sinal, dispara loucamente, para ver se outro Sócrates não nos come as papas na cabeça.

Hoje resolveu escrever sobre as tangas do actual governo sobre saúde, a propósito do intenso fogo de barragem que a imprensa tem feito sobre Ana Paula Rodrigues.

Começou o artigo com uma grande tanga “Jorge Coelho demitiu-se após a queda de uma ponte porque as pontes não caem todos os dias”.

Esta tanga anda há anos a ser vendida, mas o facto é que Jorge Coelho sabia e tinha sido avisado de que a ponte tinha problemas estruturais e não fez uma coisa que poderia ter feito (interditar o trânsito na ponte) por razões de gestão política. Sabendo isto, sabia que ficar onde estava o levaria a ser cozinhado em lume brando pelos seus inimigos, o que limitaria as suas perspectivas futuras e, inteligente e arguto como era, tratou de se livrar dessa responsabilidade, demitindo-se (como sabemos, António Costa fez exactamente o mesmo com o Governo, como Guterres já tinha feito antes, livrando-se de responsabilidades que lhe seriam cobradas no futuro, pondo-se ao fresco o mais rapidamente possível, com base numa tanga piedosa qualquer. Tivesse Sócrates aprendido a lição e hoje seria, provavelmente, um ex-presidente da república numa tranquila reforma).

Mas não é única tanga do artigo, bem pelo contrário.

Depois de uma extensa enumeração de razões para o caos no sector da saúde que hoje existe (com referências a algumas das responsabilidades concretas de António Costa na situação), fala, justamente, da péssima qualidade de gestão do sector.

É aqui que introduz uma nova tanga: “este governo não era obrigado a destruir a nova estrutura executiva criada pelo governo de António Costa, ainda antes de saber se ela funcionava”.

Ou seja, António Costa, para resolver um problema de mercearia partidária (não nomear ministro Fernando Araújo sem que ficasse demasiado melindrado), inventou uma estrutura a que nunca ligou nenhuma, nomeou uma pessoa cuja acção ninguém consegue dizer qual foi em concreto (mais tarde Fernando Araújo é eleito como cabeça de lista no Porto e, verificando que o PS não tinha ganho e, consequentemente, não iria ser ministro, renuncia imediatamente ao cargo, ilustrando bem o seu respeito pelas instituições e os processos democráticos) e João Miguel Tavares acha que o governo seguinte devia manter tudo como estava (e estava manifestamente mal), até haver certezas absolutas de que uma má solução era uma má solução.

E também acha inacreditável que o governo tenha criado expectativas (empoladas pelos seus amigos jornalistas) com o anúncio de um plano de emergência (que o governo cumpriu, resultando numas coisas, não resultando noutras), como se os problemas do serviço nacional de saúde fossem uma questão de anúncios ou de gestão de expectativas.

João Miguel Tavares entra então na tanga de que o resultado deste plano é um Orçamento de Estado que corta 10% das verbas da saúde, como se cortar verbas de um sistema ineficiente fosse, necessariamente, uma má opção (o serviço nacional de saúde duplicou o seu orçamento em dez anos, sem que a sua produção tenha acompanhado este aumento de financiamento, pelo contrário, os estudos que existem apontam para perdas de produtividade de 15%).

E fica muito enxofrado porque Montenegro reage ao fogo de barragem a que está sujeito dizendo que não são exactamente cortes, são melhorias de eficiência (do ponto de vista da comunicação política, eu também preferiria um primeiro ministro que dissesse que ia cortar sim, porque há muito desperdício, mas convenhamos que criticar um político sob fogo de levantar um escudo que acha que o protege, não me parece muito relevante).

João Miguel Tavares acha que o SNS não resiste a tanta tanga, como se resolver os problemas do SNS fosse uma questão de mais ou menos tangas, e não uma maratona de peqeunas e grandes medidas orientadas num caminho coerente, e permanentemente avaliadas e corrigidas, que se sabe que vão ser torpedeadas sistematicamente por adversários políticos e correlegionários inimigos.

A ministra traça um perfil da maioria das grávidas que têm crianças na margem do sistema de saúde, a propósito de uma senhora que morreu, dando informação errada sobre esse caso concreto, que lhe foi fornecida pelos serviços (já Fernando Alexandre foi vítima da sua confiança na informação dos serviços, mas como dizia o meu pai a propósito de tudo, é preciso confiar sempre, até prova em contrário … e mesmo depois disso. Acrescento eu, que cada vez estou mais convencido de que o meu pai tinha razão, a alternativa é muito pior, como demonstrou Lenine que, ao contrário do meu pai, entendia que confiar é bom, controlar é melhor, e todos sabemos no que deu).

João Miguel Tavares faz uma interpretação demagógica do que a Ministra disse, para a pôr a lamentar que as grávidas não tenham telemóvel, quando na verdade a Ministra estava a caracterizar uma situação (eu não sei se a caracterização está certa ou errada, não tenho informação para saber, o que eu acho é que o trabalho dos jornais não é torcer o que é dito com interpretações criativas do que é dito, mas sim ir à procura de informação que permita perceber se a caracterização que a Ministra fez é uma tanga, ou se, pelo contrário, tangas têm sido o pão nosso de cada dia no que os jornais escrevem sobre o sector).

Volto a frisar, gosto de João Miguel Tavares, tenho consideração pelo que escreve, parece-me evidente que escreve porque pensa isto ou aquilo e não porque tem uma agenda que quer contrabandear, mas tenho a certeza de que prefiro ter Ana Paula Rodrigues como ministra da saúde a ter João Miguel Tavares ou qualquer um dos jornalistas que têm estado envolvidos no fogo de barragem sobre a actual ministra.

E prefiro ter uma ministra que vai estando e tentando resolver, a um discípulo qualquer dos políticos que citei anteriormente, que se demitem, não porque querem assumir qualquer responsabilidade com a sua demissão, mas porque a demissão lhes permite fugir das responsabilidades, preservando as suas carreiras pessoais para o futuro.

O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.


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