As palavras são do homem por trás da Convenção de Albufeira. Espanha fechou a torneira no Douro na quarta-feira passada, mas Pedro Cunha Serra diz que “é um acordo que peca por chegar tarde”, culpa a “casmurrice política” e diz que os espanhóis têm feito um “esforço hercúleo” para cumprir o regime de caudais estabelecido entre os dois países em 1999. “Não temos razão nenhuma para temer uma guerra da água. Seria um erro crasso enveredar por esse caminho”
Depois de um verão de seca e escassez de recursos hídricos, o Ministério da Transição Ecológica e do Desafio Demográfico espanhol deu ordem para que se interrompesse a transferência de água para Portugal na bacia do Douro. Aquilo que inicialmente pareceu ter sido uma decisão unilateral abrupta fazia na verdade parte de um acordo entre os dois países para reduzir na semana passada as descargas de água de barragens espanholas. Teria sido impossível para os espanhóis cumprirem os caudais mínimos acordados na Convenção de Albufeira. Antes disso, já o secretário-geral do Conselho Nacional da Água tinha alertado que essa convenção “não é uma garantia” no combate à seca em Portugal.
A Convenção de Albufeira é o tratado assinado em julho de 1999 naquela cidade algarvia, onde está escrito quanta água o país vizinho tem de deixar correr para cá nas bacias internacionais: Minho, Lima, Douro, Tejo e Guadiana. Foi a convenção que tornou possível o Alqueva, o regadio na bacia do Sado e os transvases no lado espanhol do Tejo para os rios Júcar e Segura. O documento foi escrito por um jurista, Paulo Canelas de Castro, limado por um diplomata, José Carlos da Cruz Almeida, e pensado por um engenheiro, Pedro Cunha Serra, ex-líder do Grupo Águas de Portugal, nomeado em 2018 para o Comité da Convenção da Água da ONU e ainda hoje membro da delegação portuguesa da Convenção de Albufeira. Em entrevista ao Expresso, diz que problemas de água com os espanhóis “só temos aqueles que inventamos na nossa cabeça” e fala num “esforço hercúleo” do lado deles para cumprir o regime de caudais.
Temos um problema de água com Espanha?
Por um lado, somos o país juzante e, portanto, estamos sempre a ser de alguma forma afetados pelas utilizações feitas por Espanha a montante, mas por outro temos recursos relativamente abundantes, sobretudo na margem direita do Tejo e nas bacias a norte: o Mondego, o Douro, o Lima, etc. Mas tudo isto é muito relativo e está a evoluir muito rapidamente, por causa das alterações climáticas e por causa de outro fator que está a ter um impacto muito grande e que nós ainda não sabemos como enfrentá-lo: as alterações que estão a ocorrer no mercado da energia elétrica. Com o encerramento das centrais térmicas a carvão e não conseguindo importar energia de Espanha e de França, as hidroelétricas são chamadas a fazer a base do diagrama de cargas.
A base do diagrama de cargas?
Sim. O consumo de energia tem picos, que é quando as indústrias estão ativas, etc. Essas pontas do diagrama de cargas era precisamente para aquilo que serviam as hidroelétricas. Agora, são chamadas a fazer a base desse diagrama. Com as energias renováveis o esquema foi todo repensado, mas essas energias são intermitentes. Tem de se ir buscar às barragens e isso está a colocar muita pressão sobre a exploração dos nossos aproveitamentos hidroelétricos, como a cascata do Zêzere, toda a bacia do Douro, o Lima, etc. Castelo de Bode tem como condição garantir o abastecimento de água à área metropolitana de Lisboa. Estamos a falar de 200 milhões de metros cúbicos por ano. Se fizermos uma reserva para 3 anos, são 600 milhões de metros cúbicos e Castelo de Bode tem um volume útil de cerca de 900. Com as alterações climáticas a reduzirem os volumes de água que temos à nossa disposição, tanto em Portugal como em Espanha, criam-se ainda mais dificuldades à gestão conjunta das bacias hidrográficas compartilhadas. É de facto a tempestade perfeita.
Para cumprirem a Convenção de Albufeira, os espanhóis “teriam que praticamente esvaziar as suas albufeiras e pôr em risco o abastecimento de água às populações, o que seria absolutamente intolerável”
Portugal e Espanha acordaram reduzir na semana passada as descargas de água de barragens espanholas da bacia do Douro, assumindo a impossibilidade de cumprimento dos caudais mínimos acordados. Como é que um especialista encara este acordo?
Encaro como uma boa solução que só pecou por chegar tarde. Esta decisão já deveria ter sido tomada há mais tempo para evitar que os espanhóis tivessem feito o que fizeram, que foi um esforço hercúleo para garantir o regime de caudais, que seria praticamente impossível garantirem sem porem em causa objetivos fundamentais de utilização dos seus próprios recursos hídricos, como seja o abastecimento de água às populações, que tem de ter prioridade até mesmo sobre a própria Convenção de Albufeira.
Vivemos com este fantasma, mas na verdade os espanhóis têm estado a aguentar o barco e a serem zelosos para com Portugal, é isso?
Sem dúvida, não tenho dúvidas nenhumas. A bacia do Douro em Espanha é utilizada para o abastecimento às populações, para rega e também para a produção de alguma energia. Do lado português é fundamentalmente utilizada para a produção da energia elétrica. Deste lado, o abastecimento de água às […]