A situação actual dos produtores de leite é má e as previsões para o futuro próximo não são boas. Conjugam-se neste momento uma séria de factores adversos que lembram Rui Veloso: “…parece que o mundo inteiro se uniu pra (nos) tramar”:
A crise / recessão económica que provoca acentuada redução do consumo de produtos de valor acrescentado e transferência das compras para produtos mais básicos e, sempre que possível, de marca branca. Rude golpe para a teoria de Portugal apostar em produtos diferenciados. O povo português tem cada vez menos dinheiro e procura cada vez mais comida barata.
O aumento conjuntural da produção de leite em Portugal, consequência de um inverno seco (mau para as pastagens, péssimo para o preço da palha vinda de Espanha, ameaçador para o stock de palha esperado para o próximo ano, mas óptimo para criar vacas e produzir leite) e talvez da maior disponibilidade de recria, de melhoria do maneio, da tentativa de pagar as dívidas com aumento da facturação…
O aumento colossal (a gente avisou…) da produção de leite na Europa, estimulado pelo aumento do preço ao produtor (que nunca chegou a Portugal) e permitido pelo aumento anual da quota leiteira e a prometida “aterragem suave” que se confirma ser uma amaragem num lago de leite prestes a transbordar.
O aumento especulativo do custo das matérias-primas de alimentação animal, sobretudo soja e companhia. Não sei se a culpa é do novo apetite dos chineses, da bolsa de futuros de Chicago ou dos “players” mundiais de matérias-primas. Só sei que, quando se diz que época da comida barata acabou, estamos a falar da comida para as nossas vacas.
A tempestade é ainda mais perigosa porque desapareceu o abrigo que nos podia defender: As quotas leiteiras têm fim marcado para 2015 e só uma grave crise de preço nos países que mandam (já esteve mais longe mas não sei se chega lá) pode alterar a decisão tomada. É uma medida que deve continuar a ser defendida em Bruxelas, apesar do nosso limitado poder de influência.
Na ausência definitiva do abrigo das quotas, ou porque a sua eficácia actual é pouca (por termos já uma quota superior às necessidades do mercado europeu), é preciso decidir que caminho vamos escolher: A opção de entrar em pânico / “salve-se quem puder” consiste em cada indivíduo / empresa e cada sector da fileira procurar salvar-se passando por cima dos outros para manter a sua margem. Incluo aqui tanto as guerras de promoções, a utilização do leite como produto-isco como, a montante da cadeia produtiva, a hipotética descida do preço do leite com o objectivo de controlar a produção, que só produz efeito quando provoca o fecho de explorações por falência ou desistência. Esse ou outro tipo de penalizações generalizadas são injustas por castigarem todos os produtores, mesmo aqueles que se mantiveram dentro da quota ou do seu histórico de produção. A opção menos má será o “resgate” organizado pela “protecção civil”, que implica a intervenção do Estado e a cooperação dos indivíduos, por exemplo no estabelecimento e fiscalização do cumprimento de regras para evitar os abusos dos mais fortes nas relações contratuais distribuição-indústria e indústria – produtor. Importa também não esquecer, como até agora, o papel que Governo / União Europeia podem / devem desempenhar para combater a especulação no custo das matérias-primas da alimentação animal. A cooperação deve ainda ir mais além do cumprimento das regras, por exemplo, num diálogo franco para ajustar a produção às necessidades do mercado de indústria e distribuição.
Não prevejo que esta tempestade possa acabar com a produção de leite em Portugal, mas receio um elevado número de vítimas, algumas (explorações) com dimensão significativa e temo sobretudo que o sector fique ainda mais deprimido e amordaçado. Por isso, enquanto há vida, voz e leite português, aqui fica mais um SOS.
Carlos Neves
Presidente da APROLEP – Associação dos Produtores de Leite de Portugal
Atravessando o deserto a caminho da terra prometida – Carlos Neves