Tempos de crise, tempos de mudança! – Jaime Piçarra

“A incerteza que esvoaça, desgraça
muito mais do que a própria desgraça”,
Paulo Picchia

Desde Junho de 2006, prolongando-se até Julho de 2008, com maior incidência nos últimos 18 meses, a subida dos preços das matérias-primas, decorrente do aumento da procura sobretudo nas economias emergentes face a uma oferta em quebra e stocks historicamente em baixa, a alta da relação €/$ e os elevados preços do petróleo, a enorme volatilidade e instabilidade dos mercados dominaram as preocupações da opinião pública. A entrada dos fundos de investimento no mercado das “commodities”- para compensar as perdas do chamado “subprime” – conduziu a elevados níveis de especulação, com preços de cereais, de oleaginosas e de micro-ingredientes inimagináveis até então.

Os preços elevados dos alimentos, decorrentes dos altos custos de produção estiveram na ordem do dia e a crise alimentar dominou o panorama do primeiro semestre de 2008, sendo a IACA chamada a intervir em diversos fóruns e na comunicação social para justificar o comportamento dos preços das matérias-primas, dos alimentos compostos e o impacto na produção pecuária.

Durante este período, a preocupação dos governos foi a de conter a inflação que galopava e contrariar a tendência para as taxas de juro cada vez mais elevadas, pondo em causa a estabilidade económica e social e o rendimento das famílias, cada vez mais endividadas. Como referimos ao longo deste período, infelizmente não foi possível repercutir os aumentos dos custos de produção nos produtos de origem animal nos consumidores – em particular devido às relações com as cadeias de distribuição – com a Indústria a absorver o acréscimo de custos e a assumir-se como a principal, senão a única, financiadora da actividade pecuária em Portugal.

Com clientes descapitalizados e fortemente endividados, uma Indústria financeiramente debilitada devido aos atrasos de pagamentos cada vez mais dilatados, a “bolha” especulativa tinha de rebentar. Sentia-se de facto que a conjuntura mundial era insustentável e que não podia continuar por muito mais tempo. Primeiro nos EUA, seguiu-se um efeito de arrastamento noutras economias um pouco por todo o mundo, a par de escândalos que afectaram o sistema financeiro, provocando um sentimento de falta de confiança no sistema.

Quase que repentinamente, passou a falar-se de uma crise pior que a de 1929 (bancarrota da Bolsa de Nova Iorque), em que o pico da depressão foi atingida em 1932. Mas nessa altura não vivíamos num mercado global e o fenómeno da globalização, com todas as suas vantagens e inconvenientes, ainda era uma miragem. A crise atingiu o sector imobiliário, o sistema financeiro e afectou a economia real.

A perspectiva do aumento do desemprego, a recessão no espaço europeu e a nível mundial, incluindo as economias emergentes são uma realidade incontornável. Foram já injectados milhões de dólares nos EUA e mais recentemente, o futuro Presidente Barack Obama anunciou o maior pacote de investimento público na história norte-americana, 374 mil milhões de €, tendo como objectivo criar 2.5 milhões de empregos e concentrando-se no sector tecnológico, nas energias renováveis e na criação e melhoria de infra-estruturas. Na União Europeia, o Conselho de Dezembro aprovou uma verba de 200 mil milhões de € para o combate à crise, cerca de 1.5% do PIB. Cada Estado-membro tomará as medidas mais adequadas para fazer face à sua situação específica. Para além de se centrar no plano anti-crise, os políticos europeus reiteraram ainda um sinal claro de que pretendem fazer face às alterações climáticas, com um forte investimento nas energias renováveis e firmando o compromisso da quota de 10% de biocombustíveis nos transportes. Tal significa que ambiente e sustentabilidade irão dominar cada vez mais a Agenda política e de uma forma irreversível.

Para além destes aspectos, temos ainda a aprovação pelos Ministros da Agricultura, do “Health Check” que enquanto a Comissária Fisher-Boel se regozija com os resultados do acordo, ganhando claramente peso político para a próxima Comissão, quer a FIPA – numa posição a que a IACA está ligada, no âmbito da sua coordenação do Grupo de Trabalho Política Agrícola – quer a ANIL, porque o sector do leite é de longe o mais penalizado, concluem que este acordo não resolve os problemas da nossa Indústria como podem ainda agravá-los, caso se insista na renacionalização da PAC e num desenvolvimento rural sem a presença de animais e pessoas.

Para quê dinamizar o mundo rural, sem criar condições que permitam nele viver com o máximo de dignidade?

Aqui não basta adoptar um discurso politicamente correcto mas agir em termos concretos e colocam-se desde logo duas grandes questões e desafios para a indústria agro-alimentar. Por um lado, há que fazer face a um número crescente de pessoas carenciadas e a bolsas de pobreza e cujo número em 2008 superou os 925 milhões de seres humanos. É este o cenário da pobreza a nível mundial. Por outro lado, temos a obesidade que atingiu os 400 milhões de pessoas em 2005 e que devem ultrapassar, segundo a OMS, os 700 milhões em 2015, com 2.3 milhões de pessoas com excesso de peso. O cenário de abrandamento económico e de recessão, tenderá a aumentar em ambos os casos, quer pela falta de dinheiro para comprar alimentos, quer pela tendência em comprar produtos mais baratos e/ou de menor qualidade.

Todas estas questões relevam o problema de se voltar a olhar para a produção agrícola de outra forma, seguramente sustentável e sem esquecer o ambiente, bem-estar animal e segurança alimentar, apostando-se mais numa política alimentar e menos numa política agrícola, ou seja, numa PAC que integre a vertente alimentar. É essa a nossa proposta para o futuro da PAC pós-2013 e que ainda recentemente defendemos nas Jornadas de Alimentação da FIPA. Uma outra atitude de mudança tem a ver com o problema das ajudas aos agricultores, quando se discute se as ajudas directas (o direito ao histórico) são da Sociedade ou se pertence aos agricultores. Num cenário em que estas tenderão a desaparecer, a questão que devemos colocar é a de saber se os agricultores deverão ter direito a ajudas de uma forma permanente e aqui a resposta deve ser sim. Estas devem ser encaradas como uma espécie de contrato com a Sociedade, pela manutenção do ambiente, da preservação da paisagem e de um mundo rural vivo, sem esquecer a vertente da produção e da competitividade. E aqui faz todo o sentido, já que a União Europeia não consegue impor as suas normas de produção ao resto do Mundo, então que essas ajudas sejam atribuídas não como apoio ao rendimento mas para fazer face a esses sobrecustos que são impostos aos produtores europeus.

As alterações climáticas, a gestão dos recursos hídricos, a sustentabilidade, os novos desafios da PAC não deixarão de criar algum clima de tensão sobre “o olhar dos cidadãos” para a pecuária intensiva, existindo a tendência para continuar a “manipular” a opinião pública para o seu impacto ambiental. Mais um desafio que temos pela frente: a de reabilitar a imagem da pecuária intensiva face à pecuária tradicional e à agricultura biológica. Ambas devem ter o seu lugar no mercado mas que seja o consumidor a decidir e não o regulador. E tal como temos visto nos últimos tempos, urge recuperar a confiança em diversas instituições (financeiras, reguladoras) e os valores (de solidariedade social, de respeito pelos outros, pelos cumprimento dos acordos assumidos, as promessas não cumpridas…) que se têm vindo a degradar e que, numa crise que é claramente global, necessitam obviamente de soluções à escala global.

Com a perspectiva de um 2009 bem difícil e em recessão, que se pode prolongar até 2010, com 3 eleições e uma das quais para o Parlamento Europeu, é bom que as medidas que foram anunciadas no âmbito do Conselho de Ministros Extraordinário, com um pacote denominado de “Iniciativa para o Investimento e Emprego” destinado a minimizar o impacto da crise financeira e económica internacional cheguem de facto às empresas. O investimento público será da ordem de 2 180 milhões de €, sendo 1 300 milhões de financiamento nacional e 810 milhões de apoio europeu. O Primeiro-Ministro anunciou duas medidas destinadas ao Sector agrícola e agro-alimentar: o reforço das verbas inscritas no PIDACC para co-financiamento dos apoios comunitários e uma linha de crédito à exportação e competitividade no valor de 175 milhões de €.

Não basta apoiar a banca ou os sectores da indústria automóvel; é decisivo apoiar as nossas empresas e as explorações pecuárias, sob pena de sermos ainda mais dependentes e vulneráveis e vale a pena recordar que os sectores da indústria de alimentos compostos para animais, bem como os sectores da carne e do leite, representam os sectores mais importantes da indústria agro-alimentar e no nosso caso específico, um elo fundamental da agricultura e da pecuária nacional. E directa ou indirectamente, sectores importantes para relançar a confiança dos consumidores nos produtos de origem nacional.

Jaime Piçarra
Secretário Geral da IACA – Associação Portuguesa dos Industriais de Alimentos Compostos para Animais

Exame de Saúde da PAC: Uma oportunidade perdida? – Jaime Piçarra


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