O Festival Terras sem Sombra (TSS) reserva para 27 e 28 de Setembro um fim-de-semana de estreias. Pela primeira vez, o concelho alentejano de Gavião acolhe o Festival e fá-lo com um concerto singular, numa viagem entre a música do Velho e do Novo Mundo, em parceria com a Embaixada do México e o Município de Gavião. Na sua componente musical, o TSS reúne no Cineteatro Francisco Ventura duas figuras maiores da interpretação musical centro-americana, com carreiras que os levam a pisar os mais importantes palcos do mundo: o flautista Horacio Franco e o cravista Daniel Ortega. O concerto «O Périplo Infinito: Sons do México (e da Europa)» apresenta-se como uma viagem que liga Bach e Vivaldi à tradição musical mexicana. Momento, ainda, para assistir à interpretação conjunta do duo mexicano com a Banda Juvenil do Município de Gavião.
Na agenda de actividades de sábado e domingo, há a destacar a visita aos patrimónios gavionenses, nomeadamente o recém-inaugurado Museu de Arte e Atrelagem, projecto de João Luís Carrilho da Graça, e um workshop em torno do «Pão dos Vivos e Pão dos Mortos», traçando interessantes ligações entre Portugal e o México. A componente de salvaguarda da biodiversidade reserva uma acção de sensibilização ambiental nas margens do Tejo, centrada na ictiofauna e na preservação de um ecossistema único.
«O Périplo Infinito: Sons do México (e da Europa)»
A noite de 27 de Setembro (21h30) proporciona um momento de Grande Música, através do fresco intitulado «O Périplo Infinito: Sons do México (e da Europa)». Este decorre num espaço emblemático de Gavião, o Cineteatro Francisco Ventura, cujo nome homenageia uma importante figura natural do concelho. Francisco Manuel Ventura (1910-1994), poeta, dramaturgo e crítico teatral, estreou-se em 1941 com O Anjo e o Demónio e colaborou em jornais como O Século e Diário Popular. Da sua vasta obra literária há a destacar o título Jornadas de Sísifo.
O concerto reúne dois excepcionais músicos mexicanos, o flautista Horacio Franco e o cravista Daniel Ortega. Horacio Franco, flautista e maestro mexicano, é hoje uma das figuras mais reconhecidas da música de concerto no seu país, com forte projecção mediática. Formado no Conservatório de Amesterdão, destacou-se na flauta de bisel, instrumento que ajudou a legitimar como solista e em múltiplos géneros, da música de câmara ao jazz. Fundou e dirigiu a Cappella Barroca de México e apresentou-se em salas internacionais de referência, colaborando com orquestras e compositores de todo o mundo. Paralelamente, desenvolveu intensa actividade pedagógica e gravou extensivamente, cruzando música erudita, popular e tradicional.
Daniel Ortega García formou-se com distinção em Cravo e em Etnomusicologia na Faculdade de Música da Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM). Especialista no repertório dos séculos XVI a XVIII e na prática do baixo contínuo, apresentou-se em festivais no México e em países como Irlanda, França, Mónaco, Cuba, Equador e Peru. Em 2014 recebeu uma bolsa da Fondation Turquois para aperfeiçoar os conhecimentos artísticos na Académie de Musique et Danse Prince Rainier III, do Mónaco. Actualmente é professor na UNAM.
O repertório apresentado em Gavião une obras-primas da música europeia para flauta de bisel e cravo, numa incursão que não esquece a música da América do Norte. Partindo do Barroco europeu de Schmelzer, Vitali, Fischer, Bach e Vivaldi, a viagem abre-se à tradição mexicana. De Daniel Catán, compositor contemporâneo (1949-2011), referência internacional da criação daquele país, teremos a oportunidade de escutar Encantamiento (1990), assim como peças da tradição indígena das regiões de Puebla e Papantla e das etnias Yaqui, Tzotzil e Cora.
Uma vez mais, o TSS estabelece pontes entre diferentes geografias culturais e musicais. A noite de 27 de Setembro associa estes intérpretes mexicanos a um grupo de músicos gavionenses. A Banda Juvenil do Município de Gavião, criada em 1989 e com músicos entre os 13 e os 28 anos, interpretará algumas peças, uma delas, portuguesa, a par de Horacio Franco e Daniel Ortega.
«Entre o Alentejo e a Beira: Patrimónios de Gavião»
A anteceder o concerto, a tarde de sábado, 27 de Setembro (15h00), apresenta-se como um convite a um percurso urbano que cruza geografia, memória, traços culturais e patrimoniais. «Entre o Alentejo e a Beira: Patrimónios de Gavião»: assim se denomina a actividade de Património que tem o ponto de encontro no Museu de Arte e Atrelagem. Cabe a Diogo Neves e a Inês Florêncio, historiadores de arte, levar os presentes a adentrarem-se num território que guarda marcas complementares de duas regiões: a rudeza e a abundância de recursos naturais das serranias beirãs, lado a lado com a planície aberta, quantas vezes inclemente, do território alentejano. Um dos momentos altos da visita constitui-se no recém-inaugurado Museu de Arte e Atrelagem, projecto do arquitecto João Luís Carrilho da Graça (nascido em Portalegre, em 1952), que posiciona o concelho no mapa da museologia internacional. Neste espaço, o visitante encontra viaturas de luxo e atrelagens de excepção, além dos respectivos equipamentos, provenientes de colecções de renome, como a Casa Dorantes, de Sevilha, em diálogo com outros núcleos particulares.
Uma viagem que não se esgota no património erudito. Os fornos comunitários, com grandes tradições em Gavião, lembram a importância do trabalho partilhado e da economia da entreajuda, práticas que moldaram gerações. É a estes símbolos de vida quotidiana que se ligará o workshop «O Pão dos Vivos e o Pão dos Mortos», conduzido por padeiras locais e personalidades mexicanas convidadas. A partir da confecção do pão tradicional e do Pan de Muerto – que, apesar do nome, celebra a vida e a memória dos que partiram –, desenha-se um fio que serve de vínculo a culturas distantes, através da mesa.
Nas margens do Tejo, à descoberta dos peixes locais
A manhã de domingo, 28 de Setembro (09H30), reserva o habitual momento de actividade para a salvaguarda da biodiversidade. Com ponto de encontro no Museu de Arte e Atrelagem, em Gavião, os participantes na acção «O Próprio e o Alheio: Ictiofauna do Tejo» rumam às margens deste rio, na freguesia de Belver. Bernardo Quintella, biólogo e professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, orientará a actividade para uma melhor compreensão das espécies autóctones – como a boga, o barbo e a enguia, que ao longo de séculos sustentaram comunidades ribeirinhas – e uma avaliação do impacte das espécies exóticas, com destaque para o peixe-gato, considerado um predador voraz e altamente nocivo, cuja presença ameaça gravemente o equilíbrio ecológico do Tejo. Outros invasores, como a perca-sol ou o achigã, também serão analisados, revelando como chegaram às águas portuguesas e de que forma alteraram cadeias alimentares e práticas de pesca tradicionais.
Para tornar esta realidade mais palpável, serão lançadas redes ao rio, em capturas experimentais, o que permitirá observar directamente a composição das comunidades piscícolas. Além disso, haverá contacto próximo com a água, proporcionando uma experiência prática que ajudará a compreender, de forma sensorial, mas sem descurar a vertente científica, o que está verdadeiramente em risco neste ecossistema fluvial. O exercício permitirá discutir estratégias de conservação e partilhar o conhecimento acumulado pelos pescadores locais.
A programação da 21.ª edição do TSS prossegue a 11 e 12 de Outubro no concelho de Sines. Recorde-se que a presente temporada decorre sob a temática «Autoras, Intérpretes, Musas: O Eterno Feminino e a Condição da Mulher na Música (Séculos XIII-XXI)». Toda a programação da presente temporada pode ser consultada no site do Festival Terras sem Sombra. As iniciativas são de acesso livre e gratuitas.
O artigo foi publicado originalmente em Gazeta Rural.