“Toda a árvore tem o seu lugar no sítio certo”

Preocupado, mas otimista. São estes os sentimentos de António Gonçalves Ferreira, presidente da UNAC – União da Floresta Mediterrânica, sobre o estado da floresta e do setor em Portugal. “A visão que a sociedade está a construir da floresta é muito pouco real e os erros na avaliação da situação-base têm graves consequências no delineamento das políticas e dos instrumentos de política”, afirma o líder da UNAC, salientando, no entanto, que o enorme potencial da floresta, os seus benefícios ambientais e a dinâmica das fileiras que lhe estão associadas “vão permitir que avancemos no caminho certo”.

Líder de uma organização que congrega um conjunto de associações gestoras de 28 Zonas de Intervenção Florestal (ZIF), num total de 589 954 hectares e mais de 130 mil hectares de florestas certificadas, António Gonçalves Ferreira defende a promoção de uma economia rural forte, e sublinha que é também essencial para o setor que haja uma adequada transferência de valor para a base produtiva.

Leia na íntegra, a entrevista que deu ao “Produtores Florestais”.

O setor florestal detém um importante papel no plano socioeconómico do país. Qual o diagnóstico da UNAC relativamente à floresta e ao setor?

O diagnóstico da UNAC é um diagnóstico preocupado, mas otimista. Preocupado, porque a visão que a sociedade está a construir da floresta é muito pouco real e os erros na avaliação da situação-base têm graves consequências no delineamento das políticas e dos instrumentos de política. Otimista, porque o enorme potencial edafoclimático para um conjunto complementar de espécies, o benefício ambiental e social deste grande regulador do território e a dinâmica das fileiras que lhe estão associadas vão permitir que avancemos no caminho certo.

Como caracteriza o modelo agroflorestal mediterrânico? É viável na generalidade do território nacional?

Definindo modelo agroflorestal mediterrânico como um mosaico de usos agrícolas, florestais e pecuários complementares e associados, não temos dúvidas da sua viabilidade como solução de valor para a totalidade do território nacional. Obviamente que diferentes geografias levarão a diferentes misturas, de espécies e de usos, mas a coexistência destes três pilares – agricultura, floresta e pecuária – é essencial à diminuição do risco, à garantia da dimensão social e aos benefícios ambientais e climáticos que podemos gerar.

“Existe um histórico de décadas de trabalho de investigação aplicada e de transferência de conhecimento [no eucalipto], que reconhecemos, utilizamos e ambicionamos replicar”.

O eucalipto é apontado por alguns setores da sociedade como um elemento estranho no modelo agroflorestal mediterrânico. Esta ideia tem fundamento?

Não é, de todo, um elemento estranho. É, sim, um elemento de forte diminuição do risco empresarial. Toda a árvore tem o seu lugar, se a colocarmos no sítio certo. O eucalipto é uma espécie introduzida há mais de um século em Portugal, perfeitamente adaptada e um elemento importante na equação de valor para o espaço rural, em muitas geografias do nosso território. O mito criado nos anos 80 sobre o eucalipto e a “guerra” feita ao eucalipto nos últimos anos são de índole ideológica, cheia de fake news que importa continuar a desmistificar, com a única arma que sabemos ser efetiva: informação científica, credível, consistente e continuada.

A maior parte dos projetos de investigação em que a UNAC participa estão relacionados com o sobreiro, o pinheiro manso e a azinheira. Significa isto que outras fileiras com importância económica, como a do eucalipto ou a do pinheiro-bravo, estão mais desenvolvidas?

Significa que houve uma saudável especialização, com a UNAC a olhar mais para os sistemas agroflorestais mediterrânicos e o Centro Pinus para o pinhal bravo. Penso que estaremos em patamares semelhantes, com muito conhecimento por descobrir, por divulgar e por incorporar na gestão pelos produtores florestais. O eucalipto é um caso à parte, uma vez que existe um histórico de décadas de trabalho de investigação aplicada e de transferência de conhecimento, que reconhecemos, utilizamos e ambicionamos replicar.

A floresta é apontada como determinante para a valorização do mundo rural, mas a perceção é a de que o abandono prossegue. É possível atrair as novas gerações? Como?

Não sendo fácil, será possível, se promovermos uma economia rural forte. Para isso, são essenciais uma agricultura e uma floresta rentáveis, que remunerem adequadamente os capitais empresariais e o trabalho. Um programa de reformas antecipadas e de transição geracional, que seja uma evolução no modelo “Jovens Agricultores”, pode criar uma dinâmica de mudança em que, não se perdendo a sabedoria dos mais velhos, se chamaria e integraria os mais jovens, trazendo inovação, dinâmica e potencial de crescimento. Isto permitiria também libertar terra e potenciar o aumento da dimensão média das explorações agroflorestais, elemento essencial se quisermos diminuir o risco da atividade, aumentar a resiliência territorial e o potencial de remuneração dos agricultores/produtores florestais. A complementaridade agricultura/floresta toma aqui um papel fundador uma vez que é praticamente impossível a quem começa de novo sobreviver empresarialmente sem um rendimento agrícola e/ou pecuário de cariz anual. O período de recuperação do investimento florestal inviabiliza a possibilidade de empreendimentos exclusivamente florestais e nem uma adequada remuneração dos serviços do ecossistema poderá alterar essa realidade.

“O mito criado nos anos 80 sobre o eucalipto e a ‘guerra’ feita ao eucalipto nos últimos anos são de índole ideológica, cheia de fake news que importa continuar a desmistificar.”

Concorda que Portugal apresenta um défice na formação técnico-científica na floresta? Quem pode ajudar na valorização do conhecimento das boas práticas, da gestão e da certificação florestal?

O défice é, essencialmente, de recrutamento. Os cursos existem, os docentes também; os curricula podem evoluir, mas a ideia de ser “engenheiro florestal” tem sido muito pouco apelativa nas últimas duas/três décadas. Haverá múltiplas razões para este afastamento, mas a ideia de uma floresta sem rumo e sem solução, que deixámos que os média criassem e a sociedade interiorizasse, especialmente deste 2017, foi mais uma machadada no processo. Temos que investir na comunicação, verdadeira e positiva, que volte a aproximar os cidadãos da floresta, um caminho que vai demorar tempo a percorrer.

O Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) vai trazer um investimento considerável para a floresta. Sente entusiasmo dos produtores florestais em relação às intenções que têm sido anunciadas?

Penso que o PRR foi uma oportunidade perdida para o setor. Não sinto qualquer entusiamo dos produtores florestais nem das suas organizações. Nem sinto qualquer vontade da tutela em pensar o futuro em conjunto. A alteração da paisagem por decreto nunca vai funcionar e as várias propostas que fizemos foram totalmente esquecidas na letra final do PRR.

“Potenciar o aumento da dimensão média das explorações agroflorestais é essencial, se quisermos diminuir o risco da atividade, a resiliência territorial e o potencial de remuneração dos agricultores/produtores florestais.”

Acredita que este Plano vai inverter a tendência de onerar os proprietários e demais operadores da fileira florestal, a quem tem cabido um enorme esforço na resolução dos problemas, nomeadamente na prevenção dos fogos e na conservação da floresta natural?

Essa é a grande lacuna do PRR Floresta. Podiam ter sido criadas as bases para a resolução, ou pelo menos para a minimização, dessa realidade, mas o Estado continuou a optar por colocar o dever de proteção civil como um ónus de alguns produtores/proprietários florestais. Ónus que, como o Estado bem sabe, é incomportável, mas que se gere mediaticamente com a aplicação de multas e com uma ideia de intervenção musculada da GNR e a ajuda da delação vicinal. No que respeita à floresta natural, é preciso ter muito cuidado com essa definição. A renaturalização de áreas extensas do território, que os decisores políticos europeus nos querem impor, são um risco incomportável na nossa geografia. Há que proteger os valores naturais, mas num quadro de complementaridade e segurança com os espaços agroflorestais envolventes. O fogo faz parte do ecossistema natural mediterrânico e sempre que as opções para o território não assentarem na gestão ele estará presente.

A competitividade nacional está a aproveitar o potencial que existe na nossa floresta?

Não. O Estado, com a sua ação atual, está a pôr em causa o potencial florestal de Portugal, introduzindo incerteza e irracionalidade no sistema, afastando os investidores e fazendo definhar uma fileira que a cada dia que passa tem menos capacidade de reforçar a sua função como pilar essencial da economia rural de uma parte substancial do nosso país.

“O problema do período de recuperação do capital investido e os benefícios ambientais e climáticos de todas as espécies e usos florestais são, por si só, uma justificação para os apoios públicos ao nosso setor.”

A floresta de produção deve ser apoiada? Em que medida?

Como todas as outras atividades económicas que asseguram a dinâmica económica e social do país. Aliás, não percebo a dicotomia, porque toda a floresta é de produção. Há em Portugal algumas fileiras, mais dinâmicas, que permitem uma maior remuneração dos capitais investidos, mas o problema do período de recuperação do capital investido e os benefícios ambientais e climáticos de todas as espécies e usos florestais são, por si só, uma justificação para os apoios públicos ao nosso setor.

A falta de escala é o maior problema na floresta nacional?

Na maioria da realidade territorial a norte do Tejo e nas serras algarvias essa é uma verdade inquestionável. A tendência para a divisão sucessória da nossa realidade social é um elemento fortemente perturbador e mesmo a legislação recente ainda permite o fracionamento para dimensões necessariamente inviáveis, em termos sociais e económicos. Paralelamente, nenhum incentivo relevante é dado à não divisão e ao emparcelamento, prevalecendo uma ideia que ser pequeno é bom e ser grande é mau. Uma ideia completamente errada uma vez que quanto maior for a unidade de gestão maior é o ganho ambiental e em termos sociais é impossível retirar da pobreza uma parte essencial da realidade produtiva agroflorestal se não lhe dermos escala. A área média da propriedade é inferior a 5 hectares! À semelhança do problema dos jovens agricultores e da transição geracional, esta é uma área onde temos que inovar, e este é o momento para o fazermos. Estamos a entrar num novo período de programação de fundos europeus e, se não aproveitarmos, vamos perder mais sete anos.

Como projeta a UNAC a evolução do setor florestal na próxima década? O que é preciso fazer já?

Num cenário positivo, antevemos uma maior transmissão de valor à base produtiva, um crescimento da adesão às opções de certificação da gestão florestal, um investimento consolidado na gestão e na minimização de riscos, um reforço do sistema associativo e das parcerias setoriais e uma aposta forte na comunicação. A comunicação é a aposta mais urgente, sob pena de a sociedade se afastar irremediavelmente de uma definição verdadeira do que é a floresta e dos benefícios que todos podemos usufruir.

“Precisamos de uma adequada transferência de valor à base produtiva. Uma ‘valorização acrescida’ de 5 euros na conta de cultura faz mais pela floresta portuguesa que qualquer programa de apoio ao investimento.”

A UNAC representa cerca de 1 200 produtores florestais. Quais são as reivindicações que podem ser consideradas comuns à maioria?

Mais do que que o número de produtores florestais associados, o que nos parece ser mais importante é a abrangência territorial desta representação: 30% dos espaços agroflorestais mediterrânicos são geridos por associados das organizações de produtores florestais que constituem a UNAC: a ACHAR – Associação dos Agricultores de Charneca, a AFLOBEI – Associação de Produtores Florestais da Beira Interior, a AFLOSOR – Associação de Produtores Agroflorestais da Região de Ponte de Sor, a ANSUB – Associação dos Produtores Florestais do Vale do Sado, a APFC – Associação dos Produtores Florestais do Concelho de Coruche e Limítrofes e a SuberÉvora – Associação dos Produtores Florestais da Região de Évora. Esta abrangência permitiu que fossemos motor de inovação, tanto nas opções territoriais – implementando e sendo entidades gestoras de 28 Zonas de Intervenção Florestal (ZIF), num total de 589 954 hectares – como nas opções de gestão, nas quais fizemos uma aposta forte na certificação florestal, sete grupos FSC@ e PEFCTM, com mais de 130 mil hectares de área aderente.

E o que perseguem em conjunto?

As nossas principais reivindicações são quatro. A primeira, é uma adequada transferência de valor à base produtiva – uma “valorização acrescida” de 5 euros na conta de cultura faz mais pela floresta portuguesa que qualquer programa de apoio ao investimento; a segunda, parcerias territoriais, para defesa da floresta contra incêndios e contra pragas e doenças, porque sem diminuirmos de forma clara o patamar de risco biótico e abiótico dificilmente impulsionamos o investimento privado; a terceira, instrumentos de política que tenham em conta as diferentes realidades fundiárias, económicas e sociais do território, que sejam implementáveis e tenham um risco burocrático razoável. Não se pode aplicar a sistemas biológicos critérios de medição e auditoria que têm génese industrial; e, finalmente, a quarta reivindicação consiste no reconhecimento e pagamento dos serviços do ecossistema garantidos pelas áreas florestais e agroflorestais, dando oportunidade à sociedade de reconhecer efetivamente a sua preferência por um uso equilibrado do território, com uma preponderância para as soluções de mais baixa intensidade produtiva e maior valor ambiental.


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