Henrique Pereira dos Santos

Trabalhar para vos alimentar – Henrique Pereira dos Santos

Por estes dias, li o livro de Carlos Neves, “Desconfinar a agricultura”.

Não se deixem enganar pelo título do livro – percebo-o, depois de ler o livro, mas não o acho feliz – e suponho que terão gosto em o ler.

Carlos Neves é um produtor de leite – na opinião de uma leitora do Observador, não é um produtor de leite nenhum, é um chulo de vacas, que elas é que produzem leite – e é sobre o seu dia a dia que escreve.

Eu gosto muito destes livros sobre nada e coisa nenhuma, sobretudo quando me ajudam a ver mundos que me interessam, mas de que estou distante (não sei bem porquê, mas lembrei-me das Memórias da Condessa de Mangualde, que li com gosto igual, pelas mesmas razões).

Conheci há tempos Carlos Neves.

Leu, ou ouviu, uma das minhas habituais diatribes contra o facto do dinheiro para o mundo rural ser gasto com fileiras que deveriam resolver os seus problemas no mercado, em vez do dinheiro dos contribuintes ser gasto a pagar os serviços que muitas actividades prestam à sociedade sem que seja possível (ou, pelo menos, fácil), mercantilizá-los, atribuir-lhes um preço e encontrar consumidores disponíveis para os pagar.

Como é muito frequente, falo do sector do leite (intercalando com a suinicultura intensiva) como bom exemplo de fileira que nunca (ou raramente) deveria receber apoios públicos dos dinheiros do mundo rural.

E foi para contestar a minha diatribe contra a produção de leite – na verdade a diatribe é contra o uso dos dinheiros dos contribuintes para manter o preço artificialmente baixo dos alimentos – que Carlos Neves me convidou para ir visitar a sua exploração, em Vila do Conde, o que aceitei imediatamente (repito-me, gosto muito de entrar pelo mundo dos outros, para ver se o meu se alarga).

Um verdadeiro senhor, afável, com uma capacidade de comunicação muitíssimo boa, lá me fez andar ali pela sua exporação e por outras, ligadas à agricultura intensiva, para eu perceber melhor como se trabalhava para nos alimentar a todos.

Devo dizer que, independentemente de ter gostado muito da visita e de Carlos Neves – ele não se esqueceria de incluir a família que está omnipresente no livro e no seu dia a dia, e que também conheci -, continuei convencido que o sector do leite tem é de se organizar para ser justamente pago pelo produz, pelos consumidores, e não há razão nenhuma (há poucas, e muito específicas, para traduzir mais rigorosamente o meu ponto de vista) para que os contribuintes estejam a subsidiar os bens alimentares que têm mercados e procuras sólidas.

O livro já me foi útil, numa sessão recente sobre sustentabilidade no sector primário, para lembrar que se é verdade que o retrato que se faz dos agricultores em Portugal – envelhecidos, descapitalizados, com pouca inovação, etc. – tem suporte estatístico, mas esse suporte estatístico só é válido quando a unidade de medida é o agricultor.

Quando é a produção, isso não é assim, porque ao lado de muitos desses agricultores que correspondem ao retrato robot que corresponde à percepção pública do agricultor em Portugal (e que não é assim tão verdadeiro, mesmo tendo algum suporte estatístico), há outros agricultores, como Carlos Neves, em que cada um destes produz o mesmo que cem dos outros.

Estes são agricultores modernos, apoiados tecnicamente, que fazem muito bem contas – pretender que problemas como a aplicação de azoto em excesso se resolve com campanhas de esclarecimento junto dos agricultores é partir do princípio de que os agricultores não fazem contas ao dinheiro e não avaliam permanentemente a sua actividade para saber como podem cortar custos de factores de produção cujo preço tem vindo a subir enormemente, sem que o preço dos seus produtos finais acompanhe essa subida, isto é, que não são os agricultores os principais interessados em saber como se produz de forma mais eficiente – e são estes agricultores os que, de facto, enchem as prateleiras dos supermercados.

Não vale a pena procurarem o livro na feira do livro – trouxe ontem caçadores, camponeses e energias fósseis, de Ian Morris, para isso a feira do livro é boa e também ajuda a perceber pessoas como Carlos Neves – porque é uma edição de autor e por isso têm mesmo de o pedir a Carlos Neves:

carlosnevesagricultor.blogs.sapo.pt/ (um blog que vale a pena)

carlosneves74@sapo.pt

Vão por mim, é um livro muito fácil de ler e em que se aprende bastante (excepto a senhora que acha que produtoras de leite são as vacas, Carlos Neves é só o chulo delas, porque para pessoas assim não há qualquer esperança de redenção que não passe por um epifania para a qual este livro, um livro tranquilo e nada proselitista, não está talhado).

O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.


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