agricultura regenerativa

Tradicional, regenerativa, de precisão: de que agricultura precisa o futuro?

Três agricultores, três quintas, três visões de agricultura num setor em mudança. A subida continuada de preços, agravada pela guerra na Ucrânia, a crise energética e a seca, que as alterações climáticas irão acentuar, são alguns dos desafios para uma agricultura que se quer cada vez mais produtiva, sustentável e eficiente na gestão de recursos.

O ano de 2022 está a ser particularmente difícil para o setor agrícola, não só em Portugal, mas em toda a Europa. O aumento da fatura energética, a espiral inflacionista trazida pela guerra na Ucrânia, fez disparar os custos de produção. E as alterações climáticas que já ninguém nega ou a seca severa que o país atravessa, uma das piores das últimas décadas, expuseram ainda mais a grande vulnerabilidade europeia, em termos de soberania alimentar. O peso do sector agrícola na economia nacional tem vindo a perder importância desde o início dos anos de 1980. Em 2021 atingiu os 3,5 mil milhões de euros. A atividade primária está no olho do furacão, e, em plena tempestade perfeita, discute-se de que setor agrícola precisamos no futuro. Não sem antes perceber que agricultura se faz no presente.

«Trabalhar com a natureza é uma coisa difícil. É como ter uma fábrica sem telhado, a céu aberto»

Nuno Gonzalez assumiu há cerca de uma dúzia de anos a gestão da Quinta Fonte do Milho, uma propriedade que estava na família desde 1936, mas à qual nem os avós nem os pais haviam dedicado muita atenção. A quinta, localizada no planalto de Provesende, em Sabrosa, na região do Alto Douro Vinhateiro, classificada património mundial, estava entregue a caseiros. Quando Nuno se tornou no único proprietário da quinta, e começou a olhar para os resultados na folha de Excel, ficou assustado. «Não era sustentável. As receitas não chegavam a pagar as despesas. O prejuízo era enorme. Só tinha duas opções: ou vendia, ou vinha para cá eu», explica.

Nuno, formado em gestão, trabalhava numa empresa de automóveis, vivia na cidade de Vila Real. Dispôs-se a começar de novo e a aprender do zero o que é isso de produzir vinhos de mesa, vinho do Porto. A Região Demarcada do Douro é responsável por 70 por cento das exportações de vinhos com Denominação de Origem Protegida (DOP) portuguesas. A área de vinha é trabalhada por aproximadamente 20 000 viticultores, possuindo cada um deles, em média, cerca de 2 hectares de vinha. Nuno Gonzalez é um deles.

«Trabalhar com a natureza é uma coisa difícil. Não estamos dependentes só do nosso trabalho. É como ter uma fábrica sem telhado, a céu aberto. Podemos fazer o melhor trabalho do mundo, mas uma trovoada ou uma tempestade acaba-nos com tudo num espaço de minutos. Também já me aconteceu», recorda.

Na Quinta Fonte do Milho os métodos de produção são tradicionais, tentando-se minimizar as intervenções na parte da vinificação. «Se tivermos plantas saudáveis, vamos ter bons frutos. É muito mais fácil conseguir fazer bons produtos, se tivermos boa matéria-prima. É aí que apostamos», diz Nuno, 47 anos de vida, 12 de produtor de vinhos e azeite. Socorreu-se de amigos enólogos, vizinhos experimentados, arregaçou as mangas. Semeou trevo e serradela no meio das vinhas, procura aumentar a biodiversidade, fixar nitrogénio, promover a sustentabilidade ambiental.

Anda no meio dos cortadores de uvas, dos podadores de vides, faz todo o tipo de trabalhos («é melhor do que ir a um ginásio, e ao fim do dia o cansaço leva-nos todas as dores de cabeça»), aprende o que pode, estuda o que precisa. Engarrafa com marca própria desde 2015, no ano passado produziu oito mil garrafas. Escoa 90% da sua produção na venda direta, muito aos turistas que lhe passam à porta, e que aceitam a valorização que anualmente tenta aportar ao que produz. Este ano já acabou a vindima, mas ainda não sabe como vai ser o resultado – imagina que será negativo, porque só tem visto os custos a aumentar. «Já ouvi alguém dizer que isto de ser agricultor é a melhor maneira de empobrecer alegremente. Porque a gente não consegue tirar dinheiro daqui, o que consegue ganhar é para o enterrar na quinta, de novo, porque há sempre melhoramentos a fazer».

«A agricultura tem de deixar de ser extractivista. Devemos aprender com a natureza»

Ricardo Meireles também tem 47 anos de idade, e também foi há 12 anos começou a pensar seriamente em voltar a dar ocupação agrícola ao terreno familiar que tinha em Santo Tirso, um concelho do distrito do Porto, que tem uma ampla ocupação rural.

Na Quinta da Manguela, Ricardo começou por pensar fazer uma monocultura de kiwi. Ouvia falar dos cursos para jovens agricultores financiados pela União Europeia, candidatou-se a fundos para apoiar o investimento. Fotojornalista de profissão, a incursão no mundo agrícola obrigou-o a muitos estudos e leituras. Foi nessa análise que percebeu que o negócio não seria sustentável, porque só resistiria enquanto fosse subsidiado.

Alterou o projeto, candidatou-se a apoios, mas para cultivar plantas aromáticas com certificado biológico. Ainda plantou o primeiro hectare. Mas percebeu, quando chegou à comercialização, que o preço de venda teria de ser mais baixo do que aquele que havia previsto. E, «pior do que isso», acrescenta, apercebeu-se que os seus produtos poderiam levar a marca do biológico mas, admite, «não poderiam ser sustentáveis». «Estes modos de produção estão muito dependentes da indústria do petróleo, tinha o espaço coberto por telas de plástico e tubos de rega, estava a empobrecer o solo e a acabar com a biodiversidade», ressalva.

Nas duas tentativas de modelo de negócio que fez com a dita agricultura convencional – ora nos kiwis, ora nas aromáticas – concluiu que o resultado seria sempre perdulário. «Há sempre quem venda mais um pesticida, um adubo, um gel. São sempre novas soluções, para problemas que, no fundo, andamos a criar», argumenta.

O interesse – e o estudo – de Ricardo Meireles, virou-se então para a agricultura regenerativa. Inspirou-se nos modelos de Ernst Gotsch, um suíço radicado no Brasil, que desenvolveu a agricultura sintrópica. Este tipo de agricultura imita a natureza e abomina a monocultura, usa as árvores e uma enorme diversidade de plantas em diferentes estratos do solo, usa a poda como principal método e tem o aumento de biomassa como resultado.

Na Quinta da Manguela está a crescer uma das primeiras agroflorestas de sucessão do país, onde há árvores alinhadas com produtos hortícolas. «Ao fim de algum tempo, a agricultura já não é meramente extractivista. Podemos falar em agricultura de regeneração, porque pela utilização do solo estamos a regenerá-lo», simplifica Ricardo Meireles. «Ao fim de algum tempo, cada alface que vamos tirar daquele local o solo vai ficar mais rico do que quando a plantámos», exemplifica.

Atualmente, e num espaço de cinco mil metros quadrados, Ricardo Meireles tem mais de 60 espécies a produzir e a crescer – essencialmente os citrinos, como o limão e a laranja, mas também já tem as nogueiras a produzir, assim como as maçãs da espécie «porta da loja».

A Quinta da Manguela vai-se tornar numa associação de produtores, com vista a fornecer a comunidade local. «O modelo foi pensado para a agricultura de subsistência e para a escala familiar, mas a verdade é que já funciona à escala industrial. Há exemplos no Brasil que mostram que é possível produzir em vários hectares, com sistemas mecanizados. E em Portugal, na Golegã, a marca Paladin também produz o que precisa com recurso a agricultura sintrópica», termina.

«O desafio continua a ser produzir mais com menos. Temos de transformar os agricultores em gestores»
O desafio que enfrenta Portugal, a Europa e o mundo, é a necessidade de produzir cada vez mais, para alimentar cada vez mais pessoas, gastando cada vez menos recursos do planeta. É assim que João Coimbra, engenheiro agrónomo, à frente de uma produção agrícola de cerca de 600 hectares na Golegã, em Santarém, continua a enumerar o desafio que coloca também a si próprio e ao negócio de família. «Somos uma quinta centenária, proprietários há quatro gerações e queremos que a quinta continue a ser produtiva para os nossos filhos e netos», diz João Coimbra, com quase 60 anos.

João está habituado a trabalhar na quinta, a subir aos tratores, e lidar com os trabalhos agrícolas desde os 12 anos. Foi por essa altura que assistiu à primeira grande mudança, feita pelo seu pai, quando levantou uma enorme área de vinha e olival, e desistiu das culturas de sequeiro para aproveitar a muita água que havia na região. Ainda não se falava de regadios, nem se discutiam alterações climáticas. A maior produção da Quinta da Cholda passou a ser o milho.

A segunda grande mudança está a ser protagonizada pela quarta geração da família, com João Coimbra a liderar o negócio familiar de dez irmãos. Desde há pouco mais de 20 anos que começou a digitalizar todos os processos de decisão. Todas as atividades são documentadas, monitorizadas, mapeadas. Hoje em dia, a centenária Quinta da Cholda é uma das mais avançadas na utilização da chamada agricultura de precisão.

Usa drones e sensores, utiliza tratores com condução autónoma e faz georreferenciação de todas as operações agrícolas. Recolhe informação em sensores espalhados pela terra e em fotografias captadas por satélite, elabora mapas de produtividade, de nutrientes, de fertilidade, faz monitorização constante do solo e das suas produções. “O objetivo é aplicar exactamente o que a cultura precisa, no lugar certo, na quantidade certa. Sem desperdício de recursos”, sintetiza João Coimbra.

Sabendo que a agricultura consome 70% da água captada em Portugal, os níveis de poupança atingidos na Quinta da Cholda são importantes: em 1988 gastavam 10 000 metros cúbicos de água para produzir 8 mil toneladas de milho. Em 2011 usaram apenas 6500 metros cúbicos de água para produzir 17 mil toneladas. «Temos agora os consumos estabilizados e optimizados. Conseguimos isso ainda a preocupação com as alterações climáticas e com a falta de água não estava generalizada, como está agora».

O pai de João tinha 50 funcionários e nenhum trabalhava no escritório. João tem 15, e seis estão sempre agarrados aos dados e aos computadores. O segredo é usar toda a informação que é recolhida, analisar os dados, prever as falhas, corrigir as anomalias, poupar recursos. «Isto é talvez um dos maiores desafios que a agricultura atravessa: transformar os seus agricultores em gestores», apela.

Outra decisão tomada na Quinta da Cholda foi desinvestir em áreas menos produtivas para as converter em apoio à biodiversidade. «No início os trabalhadores estranhavam que se estivesse a plantar alfazema no meio do milho, mas agora já perceberam que é importante para a alimentação dos insetos que nos vão ajudar a combater as pragas», explica o engenheiro. O resultado é reduzir emissões do processo produtivo, mudando do modelo químico mecânico para um modelo eco eficiente, que passa pela conservação dos solos e dos ecossistemas.

A autossustentabilidade energética também já foi alcançada – a Quinta da Cholda produz com painéis fotovoltaicos toda a energia que necessita, e ainda vende o excesso à rede. Agora o objetivo é conseguir a neutralidade carbónica. «Não o fazemos porque o ambiente precisa ou a opinião publica agradece. A verdade é que todas estas preocupações aumentam a produtividade e a rentabilidade da Quinta», diz João Coimbra.

Há milho plantado em 530 hectares, a produção é 3,5 vezes superior à média nacional. «Produzimos milho suficiente para 2,5 dias das necessidades de Portugal. O que significa que seriam necessárias 200 quintas como a nossa para Portugal ser autossuficiente», remata João Coimbra.

Artigo publicado originalmente em Fundação Francisco Manuel dos Santos.


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