Henrique Pereira dos Santos

Transformar a paisagem – Henrique Pereira dos Santos

A evolução da paisagem é um assunto que me interessa o suficiente para eu ter feito um doutoramento, inteiramente à minha custa (e de alguns amigos a quem nunca agradecerei o suficiente o terem-me pago as propinas), nas minhas horas vagas, precisamente sobre esse assunto e sem qualquer utilidade prática para a minha vida profissional.

Embora actualmente eu trabalhe no Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas, dando apoio à sua presidência, não tenho tido quase contacto profissional nenhum com todo o processo relacionado com as Áreas Integradas de Gestão da Paisagem que estão associadas aos Planos de Gestão da Paisagem, mas fica feita a declaração de interesses.

Desde a primeira vez que ouvi falar nesses Planos de Transformação da Paisagem, depois de uns grandes fogos, que achei útil e interessante que finalmente o discurso oficial reconhecesse que o fogo é um filho do seu contexto e, consequentemente, gerir fogos só é possível gerindo paisagem.

E desde as primeiras vezes que olhei com mais atenção para a opção que foi feita para concretizar a ideia que passei a ter uma posição totalmente desfavorável à política do governo sobre o assunto (é difícil perceber o que é realmente política do governo, preconceito social e incompetência da administração pública na mistura que criou este novo sorvedouro de dinheiro público com eficácia marginal no problema que se pretende resolver).

Hoje, a pretexto de assinaturas de contratos associados aos dinheiros da bazuca, o Público dedica duas páginas de propaganda ao assunto, e zero a jornalismo sobre o assunto.

Comecemos pelos simples facto do primeiro desses planos, o único aprovado até agora, estar a ser contestado em tribunal (o que é raríssimo em Portugal e mais raro ainda neste sector que, de uma maneira ou de outra, vai sempre depender de dinheiros públicos), coisa que o jornalista omite.

Mas mais que isso, dos 270 milhões afectos ao assunto, o jornalista não consegue avaliar a distribuição de dinheiros feita, não consegue estranhar que grande parte do dinheiro vá parar a autarquias que não gerem áreas florestais, não consegue ver que há muito mais dinheiro para fazer os planos propriamente ditos que para pagar a gestão de serviços de ecossistema feita pelos donos e gestores de áreas florestais, não percebe o que significa ter na mesma rúbrica os dinheiros para pagar a capacitação técnica das equipas que vão ser contratadas para tratar dos papéis – planos são papéis, é bom não esquecer -, para fazer cadastro e a remuneração da gestão feita pelos proprietários, apesar do precedente dos Gabinetes Técnicos Florestais financiados pelo Fundo Florestal Permanente, etc., etc., etc..

Ou seja, o jornalista acredita em tudo o que lhe é dito pelos responsáveis políticos e pelos principais beneficiários – entrevistam o presidente de uma associação que consegue ver aprovados três planos destes e um consultor que vive de fazer estes planos – esquecendo-se de ir entrevistar os destinatários finais do dinheiro, isto é, quem faz de facto a gestão dos terrenos, nomeadamente na primeira e única experiência em curso no projecto piloto de Monchique.

E passa pela violência administrativa do arrendamento forçado de terras como se fosse uma mera questão técnica de boa gestão do território e não uma violação de direitos fundamentais dos cidadãos. Ainda por cima, sem qualquer garantia de utilidade para atingir os objectivos que se pretende: a remuneração adequada da gestão socialmente útil que o mercado não remunera.

Portugal é, há duzentos anos, um dos países mais pobres da Europa ocidental (e, a espaços, mesmo “o” país mais pobre)?

Sim, é, e atirar dinheiro para cima dos problemas, vai continuar a ser, porque quando se atira dinheiro para cima de um problema uma das duas coisas desaparece, raramente sendo o problema.

Em Portugal há dinheiro a mais que não custou a ganhar a quem decide sobre ele, e isso é uma maldição que nos irá perseguir por muitos anos.

O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.


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