A transgenia abre novas possibilidades para incorporar características desejadas no trigo, sejam atributos agronômicos ou nutricionais. Ainda distante do consumidor, o trigo transgênico deverá compor o cenário futuro na produção de grãos.
A planta de trigo, da forma como a conhecemos hoje, tem aproximadamente 10 mil anos. Durante todo este período, o trigo sofreu cruzamentos espontâneos, ocasionando a troca de genes com outras espécies, o que permitiu a evolução da planta de um simples capim para um cereal. Nos dias de hoje, buscando produzir plantas com características desejadas – tais como alta produtividade, resistência a doenças, adaptação local e qualidade nutricional – são selecionadas plantas superiores, cruzadas entre elas e novamente selecionadas, num processo chamado melhoramento genético.
No melhoramento dos cereais de inverno da Embrapa Trigo são utilizadas duas técnicas: o cruzamento convencional e a engenharia genética (transgenia). De acordo com a pesquisadora Sandra Patussi Brammer, a diferença entre os dois processos está na fecundação da planta e na compatibilidade sexual entre as espécies, como é o caso do trigo. “No método convencional cruzamos diferentes plantas de trigo através da fecundação dos gametas (processo de reprodução sexual das plantas). Na engenharia genética a técnica consiste em transferir diretamente um gene de outra espécie (detentor da característica desejada) para a célula do trigo ainda em formação, sem a necessidade de fecundação” explica Brammer.
Uma planta transgênica nada mais é do que aquela que recebeu um ou mais genes (fragmento de DNA) no seu genoma por meio do uso de técnicas da engenharia genética. E este gene, geralmente, codifica para a produção de uma proteína que irá conferir uma característica desejada como, por exemplo, nos casos sendo estudados em trigo, maior quantidade de fibras alimentares, melhor absorção de ferro e zinco, tolerância à geada e à seca, resistência a doenças, eficiência no uso de nutrientes e água.
Uma das linhas de pesquisa trabalhada na Embrapa Trigo visa incorporar por transgenia em trigo a tolerância à seca e ao calor, principalmente para viabilizar o cultivo de sequeiro no Cerrado do Brasil Central. Esta é uma importante característica sendo buscada por transgenia nessa cultura por dois motivos: preparar-se para as possíveis consequências ocasionadas pelas mudanças globais no clima e a dificuldade de obter esta característica utilizando métodos convencionais de melhoramento.
Na resistência à giberela, que é uma doença de grande impacto na triticultura da Região Sul do Brasil, a Embrapa Trigo investe na técnica de silenciamento gênico, que busca silenciar genes importantes para o fungo causador da giberela conseguir infectar a planta e também para diminuir a quantidade contaminação dos grãos por micotoxinas. Em anos com condições ambientais favoráveis à ocorrência de epidemia, não existem cultivares de trigo suficientemente resistentes a esse fungo, tornando o seu controle muito importante para garantir que o trigo e seus derivados sejam alimentos seguros.
Outro foco de pesquisas utilizando transgenia em trigo é a tolerância ao alumínio, o que permitirá melhores resultados da cultura em ambientes ricos em solo ácido e com disponibilidade de alumínio tóxico. Os solos podem ser corrigidos por calagem, mas uma planta com maior tolerância pode diminuir a necessidade de correção. Além disso, como normalmente a correção é superficial, as raízes poderiam alcançar uma profundidade maior no solo não corrigido e, em situações de déficit hídrico, poderiam alcançar água em locais mais inacessíveis do solo, minimizando os efeitos deste estresse.
A pesquisadora da Embrapa Trigo Elene Yamazaki Lau argumenta que o processo de transgenia não é tecnologia exclusivamente de criação humana, pois a transferência gênica entre organismos já ocorre na natureza muito antes do ser humano tomar conhecimento do fato. A pesquisadora explica que, apesar dos conflitos que a técnica de transgenia tem gerado na sociedade, o método em si não é um risco porque o que é transferido é o material genético, que é formado por moléculas universais, que constituem o DNA, iguais em seres humanos, animais, plantas e microrganismos. “O que deve ser considerado é o impacto da característica conferida por este transgene para o uso pretendido, e não o simples fato de ser transgênico”.
Longo caminho para chegar aos transgênicos
O caminho a ser percorrido para obter uma planta transgênica em nível comercial é longo. Primeiro, os pesquisadores verificam se o uso desta tecnologia é a estratégia mais adequada para incorporar ou alterar características de determinada cultura. Outro passo é decidir qual característica alvo seria trabalhada via engenharia genética, sendo ela difícil ou praticamente impossível de ser obtida pelo melhoramento convencional.
O próximo desafio é identificar os genes candidatos e sequências mais promissoras para obter várias plantas transformadas para cada combinação de genes. É necessário dominar a tecnologia que permite transferir genes para células vegetais e obter plantas férteis. Uma vez obtidas, estas plantas devem ser avaliadas em casa de vegetação e no campo quanto à expressão da característica desejada e com relação aos quesitos agronômicos.
Após identificar um evento elite, ou seja, um transgene que foi inserido em um local do genoma que resulta na característica desejada, este deverá ser introduzido em materiais genéticos superiores agronomicamente. Essas plantas devem também ser testadas para comprovar se possuem as características fenotípicas, agronômicas e ecológicas idênticas às não transgênicas, em várias gerações, a fim de se obter a liberação comercial junto à CTNBio. Ressalta-se que todos esses procedimentos devem ser realizados em rígidas condições de biossegurança.
Perspectivas
Somente no período de 1996 a 2017, a área com cultivos transgênicos aumentou 112 vezes. Hoje, os transgênicos ocupam 14% da área agrícola no mundo. O Brasil detém a segunda maior área com cultivo de transgênicos (51,3 milhões de hectares), principalmente em soja, milho e algodão.
Apesar dos avanços na área científica, ainda não existe cultivo comercial de trigo transgênico no mundo por vários motivos: “Além da pouca aceitação dos consumidores ao trigo transgênico, outro limitante é o grande número de países que praticam o uso de semente salva, que não resultaria em retorno financeiro aos obtentores da tecnologia. Para desenvolver um trigo transgênico é caro e demorado, com muitas exigências para seguir os trâmites da legislação de biossegurança. Enquanto não houver aceitação, tanto do produtor quanto do consumidor, será difícil ter um trigo transgênico sendo cultivado comercialmente no mundo. É preciso fornecer uma característica muito estratégica para ser aceita e valer o investimento”, conclui a pesquisadora da Embrapa Trigo Elene Yamazaki Lau. Ela avalia, entretanto, que produtos gerados por edição gênica, sem inserir material genético externo, podem ser considerados não transgênicos em vários países, inclusive no Brasil, facilitando a obtenção de material comercial. Assim como em outras áreas, como a médica, esta tecnologia pode trazer benefícios para a cultura que são impossíveis de serem conseguidas pelo melhoramento convencional.
Imagem: Elene Lau no laboratório de biotecnologia da Embrapa Trigo – Foto: Joseani Antunes