Pretendendo afirmar-se no mundo de uma forma mais saliente, perseguindo novos objectivos e fazendo face a novos desafios, sem que os Estados-membros estejam disponíveis para reforçar as suas contribuições financeiras, a Europa tenderá a virar-se para os montantes consagrados à PAC e desde há muito ambicionados por defensores de outras políticas e de outros interesses.
A Política Agrícola Comum, exactamente aquela que deveria revelar maior estabilidade, face às características dos processos produtivos que visa enquadrar, quase sempre de ciclo longo e muito longo, tem estado em reforma permanente.
Com grandes reformas de cinco em cinco anos, a PAC tem sofrido alterações permanentes, a um ritmo que chega a ser inferior a um ano, se às decisões europeia juntarmos as decisões nacionais, cuja orientação muda com maior frequência que os próprios Governos (8 ministros nos últimos 14 anos).
Os apoios da PAC ao rendimento dos agricultores, antes implícitos nos preços, a seguir tornados explícitos para compensar as reduções de preços, mas ligados à produção, depois desligados e integrados no Regime de Pagamento Único (RPU), sucessivamente reduzidos (modulados), podem vir a desaparecer em 2013 se os agricultores não se mobilizarem em sua defesa e se não for demonstrada a sua necessidade, justificação e legitimidade.
O caminho para o seu desaparecimento tem sido longo, passo a passo, cumprindo os desígnios e a estratégia daqueles que sempre a criticaram e confirmando tudo aquilo que disseram aqueles (poucos) que a têm apoiado.
Os maiores aliados dos que a criticam, têm sido, e vão continuar a ser, os que não se manifestam, os que se deixam impressionar pelas modas tornadas politicamente correctas e todos aqueles, que são muitos, desinteressados por tudo o que respeita à vida pública e à política.
Uma coisa é certa: se continuar a haver uma PAC depois de 2013, ela será diferente da actual.
Ser-lhe-ão atribuídos novos objectivos, indo ao encontro das maiores preocupações da sociedade europeia.
O que resta saber é quais serão essas preocupações, que o debate público, agora iniciado, deve esclarecer e fazer emergir, com genuinidade informada.
Calendário:
Revisão do orçamento europeu até à reforma da PAC, após 2013
Novembro de 2009: Comunicação da Comissão sobre a revisão do orçamento da UE
1º Semestre de 2010: Comunicação da Comissão sobre a futura PAC e perspectivas financeiras
2º Semestre de 2010: consulta pública
1º Semestre de 2011: propostas legislativas sobre a Pac e perspectivas financeiras
2º Semestre de 2011: discussões técnicas
1º Semestre de 2012: negociações
2º Semestre de 2012 e 2013: execução do quadro jurídico
Os montantes a ter em consideração
A PAC é responsável por uma parte significativa das despesas da UE. Contudo, tratando-se de uma política comum, ela evita que os Estados-membros suportem essas despesas, que equivalem, aliás, a menos de 0,5% do PIB e apenas a 1% das despesas públicas do conjunto dos países da União.
Os quadros seguintes mostram a evolução nos últimos três anos, dos montantes relativos ao orçamento global da União Europeia, ao orçamento total da PAC, e à repartição deste último montante entre ajudas ao mercado, incluindo ajudas directas ao rendimento (o chamado 1º Pilar) e ao Desenvolvimento Rural ( o chamado 2º Pilar).
No segundo quadro, pode constatar-se a grande diferença quando se compara a repartição entre o primeiro e o segundo pilar, para o conjunto da União e para Portugal.
A especificidade portuguesa | ||
Apoios PAC | ||
1º Pilar | 2º Pilar | |
Apoio ao rendimento | Desenvolvimento Rural | |
União Europeia | 77% | 23% |
Portugal | 52% | 48% |
Tudo o que se segue, tem a ver com estes montantes, com a sua repartição e com os interesses em jogo. Esses interesses, não são só divergentes, entre políticas, opções e objectivos. São sobretudo entre Estados membros, cujas situações não são comparáveis (quer se trate de desenvolvimento, de estrutura produtiva ou de tipo de agricultura e de auto-suficiência alimentar)
O debate já começou
A primeira posição dos Serviços da Comissão Europeia (06/10/2009)
No cumprimento do calendário acima indicado, previsto para a revisão do orçamento da
UE e para as novas perspectivas financeiras após 2013, os serviços da Comissão Europeia prepararam um documento, sob a forma de projecto de Comunicação da Comissão ao Parlamento e ao Conselho, que fizeram circular entre serviços e a que chamaram “Uma Nova Agenda para uma Europa Global: Reformar o Orçamento, Alterar a Europa”.
Este documento está a gerar muita controvérsia, inclusivamente no seio da Comissão, que não o reconheceu como um documento oficial, tendo aliás sido objecto de duras criticas por parte da então Comissária Dinamarquesa, responsável pela agricultura.
De qualquer modo, ainda que seja uma matéria que terá que ser considerada pela nova Comissão, o debate está lançado.
No que diz respeito à PAC, o documento menciona a necessidade, de se enfrentarem novos desafios, de se concentrarem os esforços financeiros em áreas em que se acrescente mais valor, de se efectuar uma redução suplementar no orçamento destinado à Política Agrícola Comum e de orientar esses recursos para outras prioridade europeias.
Entre os desafios, o documento sublinha, a mitigação das alterações climáticas e a salvaguarda da qualidade alimentar, da biodiversidade, dos recursos hídricos e do bem estar animal.
Além disso, os serviços da Comissão responsáveis pelo documento, propõem: o abandono do modelo histórico de subsídios; a redução das intervenções públicas no mercado; o apoio ao rendimento dos produtores exclusivamente baseado na produção do que consideram “bens públicos” (ambiente, qualidade, alterações climáticas); o aumento do cofinanciamento dos E/Ms.; o aumento da modulação obrigatória; a criação de um 3º Pilar para as alterações climáticas e a diversificação de actividades não agrícolas em áreas rurais.
Este documento, foi qualificado nos meios agrícolas e em vários países europeus, sobretudo naqueles que, como a França e a Espanha, têm maiores interesses agrícolas, como destinado a desmantelar a PAC, a partir de 2013.
A Declaração dos Académicos e Investigadores (19/11/2009)
Foi recentemente tornada pública uma Declaração, com o titulo “Uma Política Agrícola Comum orientada para os bens públicos europeus”, subscrita por um grupo de académicos e investigadores de vários países da UE. O seu objectivo expresso é o de contribuir para o debate público sobre o futuro da PAC, no contexto das discussões que agora se iniciam sobre a reforma do Orçamento Europeu, após 2013.
A Declaração insere-se numa já antiga tendência doutrinária, inicialmente liderada por académicos britânicos e seguida pelas autoridades daquele país, a que têm aderido, outros países da UE, um largo número de antipatizantes sinceros da PAC e, provavelmente, um ainda maior número de potenciais beneficiários da parcela do orçamento europeu que seria libertado com uma eventual extinção da Política Agrícola Comum1.
Tal como ninguém tem o direito de duvidar que todos os seus autores pretendem contribuir para o bem da Europa e para a racionalização da repartição das despesas do seu orçamento, também me parece legitimo admitir que da parte de muitos subscritores pouco pesará o interesse dos agricultores europeus, que se diluirá num universo de preocupações bastante mais abrangente.
No essencial, a declaração defende o fim da PAC sem qualquer ambiguidade ou interpretação alternativa. Propõe a sua substituição por uma política focada na diversidade biológica, na defesa dos recursos naturais e na mitigação das alterações climáticas.
Na Prática, segundo a Declaração, o objectivo da política agrícola deixaria de ser a agricultura e passaria a ser o ambiente. Não é de conciliação que se trata mas sim de substituição de objectivos.
Mais concretamente, o documento propõe o fim do chamado 1º Pilar da PAC, (“o primeiro pilar deveria ser progressivamente abolido”) que diz respeito ao apoio aos rendimentos dos agricultores e às intervenções no mercado (cerca de 77%% do Orçamento da PAC e 31% do orçamento total da UE em 2009).
Quanto ao 2º Pilar (o do desenvolvimento rural, dizendo respeito a cerca de 23% do orçamento da PAC) o documento propõe que “apenas se deverão reter as políticas que promovam bens públicos genuinamente europeus, que sejam eficientemente dirigidos aos seus objectivos e que evitem um custo orçamental exagerado”.
Além disso, a Declaração segue de bastante perto o documento preparado pelos serviços da Comissão Europeia sobre o futuro do orçamento e da PAC para depois de 2013
Para melhor se perceber os seus propósitos e as suas consequências, a Declaração deve ser lida, relida e contextualizada. Dever-se-á ter em conta, não só a situação actual da agricultura europeia, marcada pela irracionalidade e volatilidade do funcionamento dos mercados a nível mundial, como também a história da PAC e das suas reformas bem como a evolução graduada das posições dos seus críticos, designadamente do pensamento central que os inspira de raiz fortemente liberal.
Toda a Declaração se concentra/resume numa ideia simples: uma política agrícola, concebida, gerida e paga, a nível europeu, só é legitima se orientada para a produção de “bens e serviços públicos” e, mesmo entre esses, só para os que não devam ser financiados pelos orçamentos nacionais.
De forma muito precisa, a declaração considera que “alguns bens públicos legítimos (os ligados ao ambiente, à biodiversidade e às alterações climáticas) que são produzidos pela agricultura deverão ser, no futuro, financiados pelos orçamentos nacionais e não pela UE“
Não sei se a síntese pode ser partilhada por todos os subscritores da Declaração. Contudo, é muito difícil atribuir-lhe outra intenção que não seja: i) de liberalizar totalmente os mercados agrícolas e acabar com a intervenção pública no seu funcionamento; ii) suprimir os apoios ao rendimento dos agricultores remetendo a solução da insuficiência dos seus rendimentos para as políticas sociais de cada Estado membro da UE e, iii) renacionalizar os incentivos à produção de “bens e serviços públicos” à excepção de algumas “mais-valias” que, nesse contexto, possam justificar uma intervenção europeia, mais de supervisão do que de financiamento.
Por uma PAC que sirva os interesses nacionais (do país e dos agricultores)
Tal como os serviços da Comissão, ou os subscritores da declaração antes mencionada,
não deve haver hoje em dia nenhum europeu consciente que não valorize, com simpatia, a produção dos bens e serviços públicos, que não os considere uma prioridade europeia e que não julgue adequado integrá-los de forma mais explicita e eficaz nos objectivos da PAC .
O que duvido, para não dizer que tenho a certeza, é que a forma de o fazer, proposta na Declaração (que a partir de agora considerarei como sendo idêntica à dos serviços da Comissão), estará longe de vir a ter essa consequência.
Muito pelo contrário, penso que ela só acentuaria as distorções actualmente existentes entre Estados-membros e agricultores europeus, marcando ainda mais as diferenças entre países ricos e pobres.
Além disso, penso que as medidas propostas potenciariam uma gestão/exploração dos recursos naturais ainda mais desequilibrada do que a actual, em resultado da intensificação agrícola inelutavelmente associada à liberalização dos mercados.
Finalmente, tenho dificuldade em perceber a razão que levou os autores do documento a excluírem do seu conceito de bens e serviços públicos, a produção de alimentos, a ocupação do território, a coesão económica e social e a necessidade de segurança mínima de autoabastecimento de todos os países da Europa.
Porque penso que a legitimação pública de qualquer política é um assunto que não pode, nem deve, ser ignorado, e porque também penso que a defesa do ambiente e a luta contra as alterações climáticas são desafios fundamentais que devem ser enfrentados com determinação, também defendo, naturalmente, a introdução de alterações na PAC que a tornem mais racional, mais justa e mais eficaz, na sua contribuição para a sustentabilidade da agricultura europeia.
Tendo em consideração o contexto nacional (económico, social e ambiental) e a situação concreta da nossa agricultura, o seu desenvolvimento, diversidade e condicionantes naturais, as suas necessidades, os efeitos positivos e negativos da actual PAC, que a enquadra, apoia e condiciona, penso que há que definir um conjunto de princípios que determinem, quer as rejeições, quer as propostas que melhor servem os interesses nacionais.
Ainda que a definição do interesse nacional não seja fácil, nem certamente consensual, julgo haver uma razoável unanimidade nacional, pelo menos relativamente: i) à penalização do abandono e à valorização da ocupação do território; ii) à necessidade de um elevado nível de auto-abastecimento; iii) à manutenção de uma estrutura diversificada de tipos de explorações agrícolas e de orientações produtivas adaptadas à diversidade agrícola nacional (fundiária, ambiental e demográfica).
Além disso, os portugueses, como todos os outros europeus, preocupam-se crescentemente e justificadamente com a preservação da natureza e com a qualidade e genuinidade dos produtos agrícolas.
Este conjunto de valores, partilhados por uma larga maioria de portugueses, é suficiente para definir o interesse nacional.
Parece-nos por isso evidente que o interesse nacional se realiza com uma agricultura diversificada e multifuncional, que ocupe o território, que dê expressão económica e social a todas as nossas regiões, de Norte a Sul, do Litoral ao Interior, com uma agricultura adaptada às suas condições fundiárias naturais e ambientais.
O problema é que o interesse nacional, assim definido, não poderá concretizar-se num contexto de mercado mundial desregulamentado, sem política de apoio que permitam viabilizar uma grande parte das actividades agrícolas, tecnicamente possíveis mas não competitivas à escala mundial.
Isto acontece, não só porque o mercado mundial, ainda que sendo livre, está longe de ser justo, mas também porque, no caso dos produtos agrícolas ele é basicamente um mercado de saldos, muitas vezes refém de especulações financeiras que o artificializam, ou de condições e de custos (câmbios, factores de produção, salários, etc.) que alteram e pervertem completamente aquilo que deveria ser um são ambiente competitivo.
Por outro lado, são conhecidos os constrangimentos naturais que em Portugal condicionam as produtividades físicas das culturas e actividades agrícolas (clima, solos, topografia, disponibilidade de água, etc.).
O quadro seguinte mostra com crueza e simplicidade a dependência económica da agricultura portuguesa e a sua extrema vulnerabilidade aos apoios comunitários, designadamente os referentes ao 1º Pilar da PAC.
O simples facto do rendimento dos agricultores depender em 76% dos apoios associados à PAC, principalmente ao 1º Pilar, revela bem o que lhe aconteceria se esses apoios lhes fossem retirados.
O resultado seria óbvio. Ficaríamos completamente dependentes do exterior, agravando mais ainda o défice da nossa balança comercial e da nossa dívida externa, com uma agricultura residual, marginal e simbólica, sem importância económica e social, de pequenos núcleos sem expressão territorial, constituída por sobreviventes à concorrência internacional e condicionada pelos interesses dos grandes países produtores.
O que rejeitamos e o que defendemos
Em resultado do anteriormente exposto,
O que rejeitamos:
– a extinção do 1º Pilar da PAC, que conduziria globalmente a agricultura portuguesa à inviabilidade. Os apoios agrícolas ao rendimento podem e devem ser discutidos, eventualmente corrigidos e mais justamente distribuídos, mas nunca suprimidos.
– o cofinanciamento dos custos da PAC, que conduziria à sua renacionalização, ao abandono do seu carácter comum e ao agravamento das desvantagens dos países pobres relativamente aos países ricos;
– a desregulação do mercado e a ausência de mecanismos de controle e de intervenção no seu funcionamento, o que só agravaria a iniquidade das condições de concorrência e acentuaria as consequências dos mecanismos que falseiam a competitividade;
– a abolição do principio da “preferência comunitária”, o que exporia a agricultura europeia a flutuações permanentes do mercado e a movimentos especulativos sem relação com os custos de produção.
O que defendemos:
– a manutenção do financiamento comunitário a 100% das ajudas ao rendimento;
– a atribuição das ajudas ao rendimento deveria ser:
– mais equitativa em termos europeus (iguais montantes unitários);
– sujeita a um limite máximo por exploração/beneficiário;
– menos histórica, abrangendo todas as actividades e todo o território com uso agrícola;
– com um nível variável dependente da evolução dos preços agrícolas no mercado mundial;
– mais dependente da contribuição de cada actividade, para a defesa do ambiente, da biodiversidade, do combate às alterações climáticas, criação de emprego, economia de energia e dinamização económica das regiões rurais pobres e com elevados níveis de abandono.
– a instituição de um sistema de protecção das importações agrícolas do exterior, em função da sua origem e do respeito por padrões standard, de natureza social e ambiental;
– a instituição de um mecanismos de gestão de riscos (acrescidos com as alterações climáticas), quer naturais, quer de mercado, com base num sistema de seguros com cofinanciamento europeu, a partir do segundo pilar da Pac;
– a instalação de um fundo de créditos de carbono parcialmente financiado pelas actividades que mais contribuem para o aumento do efeito de estufa e a partir do qual seriam premiadas as actividades que mais contribuíssem para o sequestro de carbono;
– a continuação do 2º Pilar, para apoio ao desenvolvimento rural, mantendo-se designadamente a possibilidade de financiamento para a modernização das explorações agrícolas e agro-industriais nos países em que essa modernização continua a ser uma necessidade estrutural
– criação de um 3º Pilar da PAC ( por segregação do 2º Pilar) para enquadrar todas as actividades que contribuam para o combate às alterações climáticas.
Armando Sevinate Pinto
Engenheiro Agrónomo
(1) Segundo declarações da Comissária no Parlamento Europeu, em 10/11/2009, ” há muitos tubarões à procura de um bocado de orçamento”