Francisco Gomes da Silva

Um “novo futuro” para o regadio em Portugal – Francisco Gomes da Silva

A agricultura constitui-se como o maior utilizador de água, tanto à escala global, como à escala nacional. Esta constatação, que muitas vezes é feita em tom crítico e induz um preconceito de mau uso, não deveria apanhar ninguém de surpresa: afinal, estamos a falar da atividade económica que garante a alimentação aos mais de 7 mil milhões de habitantes do nosso planeta. Será difícil imaginar uma utilização mais nobre de um recurso natural tão valioso como é a água. A FAO estima que será necessário que a produção de bens agrícolas de base alimentar aumente entre 60 e 70% para garantir uma alimentação satisfatória dos 9 mil milhões de pessoas que habitarão a terra em 2050. Ainda de acordo com a FAO, este aumento de produção de produtos agrícolas terá que acontecer maioritariamente com recurso às áreas que estão atualmente em produção, uma vez que a entrada de novas áreas em produção deverá ser limitada. Mais uma vez, tanto à escala global como à escala nacional, o regadio terá um papel fundamental na garantia da satisfação das necessidades alimentares que se projetam.

As caraterísticas do nosso clima, em que a estação mais quente é também a estação mais seca, impõem, desde há muito, o regadio como condição de competitividade para a agricultura portuguesa. Por essa razão, e desde o final da década de 30 do século XX, o Estado português assumiu como imprescindíveis diversas obras hidroagrícolas, permitindo a beneficiação com regadio de vastas áreas da nossa superfície agrícola. A par do esforço público, a iniciativa privada dos agricultores foi responsável pela infraestruturação para regadio de áreas muito significativas. Em resultado deste esforço conjunto, Portugal tinha, em 2013, cerca de 558.000 hectares infraestruturados para regadio, dos quais 35% (194.000 ha) correspondiam a regadios públicos e os restantes 65% (364.000 ha) a regadios privados. De realçar que, da área beneficiada por regadios públicos até então, 118.500 hectares (61%) localizavam-se no Alentejo, região do país em que o deficit hídrico observado é mais relevante

O processo de alterações climáticas em curso irá agudizar a necessidade do recurso ao regadio no nosso país, estendendo-a a regiões que, até hoje, conseguiam dispensá-lo. De acordo com os vários cenários estudados, e em consequência deste processo, o clima em Portugal tenderá a caraterizar-se por um aumento da temperatura média e pela diminuição dos volumes anuais de precipitação. Tão relevantes como estes ajustamentos médios (que em si mesmo se traduzirão num aumento do deficit hídrico para as plantas) são as alterações esperadas para os seus padrões de distribuição (intra e inter anual), com o volume de precipitação a ocorrer de forma mais concentrada no tempo, de onde resultarão inevitavelmente períodos de estiagem mais prolongados.

Com o projeto de Alqueva, iniciou-se um “novo futuro” para o regadio em Portugal, futuro esse que deverá assentar em três dimensões essenciais que gostaria aqui de destacar:

  • deverá contribuir para promover o aumento da capacidade de armazenamento das águas superficiais (que tenderão a ter regimes de escorrimento mais acentuados, com diminuição das taxas de infiltração) e de regularização dos caudais dos rios, nas diversas regiões do país;
  • deverá contribuir para garantir a “ligação em rede” dos diversos sistemas (atuais e futuros), não esquecendo a importância da ligação estratégicas entre as massas de água superficiais e as subterrâneas;
  • deverá promover uma gestão integrada dos múltiplos fins a que a água se destina, subordinando essa gestão a princípios de equilíbrio entre os diversos fins.

É importante referir que aquilo que acima designei por “redes de armazenamento e distribuição de água” não têm obrigatoriamente que constituir-se como megaestruturas construídas de raiz. Muitas vezes as soluções passarão por aproveitar estruturas, naturais ou construídas, já existentes, aumentando-lhes a capacidade de armazenamento e promovendo a sua gestão integrada e ligação em rede.

É certo que todos temos a memória demasiado curta, pelo que a chuva que felizmente caiu a partir do final de Fevereiro deste ano veio, infelizmente, reduzir a urgência com que Portugal deve encarar a definição e a implementação no terreno deste tipo de soluções. Estou certo, no entanto, que da parte das entidades públicas e privadas que mais de perto lidam com estas questões, a noção da necessidade persistirá.

No meu entender, a intervenção futura do Estado em matéria de infraestruturas públicas de rega, deverá guiar-se pelos seguintes princípios:

  • privilegiar o aumento da capacidade de armazenamento das águas superficiais, através da construção de novos reservatórios/barragens;
  • integrar esses novos “reservatórios” em redes, por crescimento capilar das redes pré-existentes;
  • zelar pela manutenção das infraestruturas já existentes, algumas delas (barragens e redes primária e secundárias de rega) a necessitarem de intervenções de manutenção relevantes;
  • estabelecer regras de gestão da água armazenada nestas infraestruturas que reflitam a multiplicidade de fins que a “nova” realidade das alterações climáticas nos impõe;
  • utilizar critérios de seleção para a localização dos novos investimentos nesta matéria que não esqueçam o papel essencial do regadio no fortalecimento da coesão territorial e social.

O Estado português conhece um vasto conjunto de ideias e de projetos de investimento em Aproveitamentos Hidroagrícolas ou de Fins Múltiplos, em diversos estados de maturação. Muitos deles constam de um documento produzido em 2014 pela Direção Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural (Estratégia para o Regadio Público 2014-2020). Outros são já posteriores a esse documento. No seu conjunto constituem uma excelente base para o planeamento do futuro nesta matéria. Aponto, de seguida, dois exemplos, em estados de maturidade muito distintos, que cumprem em pleno os critérios acima identificados.

A barragem do Pisão-Crato: um aproveitamento de fins múltiplos

Este é um projeto antigo, que se baseia na construção de uma barragem na ribeira de Seda, a montante da barragem do Maranhão. Foi já objeto de diversos estudos (os primeiros datam de 1957), que culminaram na elaboração do respetivo projeto de execução, no final da primeira década deste século (de 2006, atualizado em 2010). A sua construção acabou por não avançar, por escassez de verba por parte do Estado.

A sua concretização, que mais do que nunca se justifica, contribuirá de forma muito relevante para o cumprimento dos princípios que acima referi:

  • localiza-se numa região do interior do país, espalhando a sua influência direta por uma vasta região, que se estende da zona de Portalegre (localização da barragem), passa pela zona de Alter do Chão, Fronteira e Avis (localização da maior parte dos cerca de 10.000 ha beneficiados com regadio) e termina na zona de Coruche (tendo em conta a necessidade de gerir esta infraestrutura em paralelo com as barragens de Montargil e Maranhão);
  • conduz a um aumento muito significativo da capacidade de armazenamento de águas superficiais na região (na bacia da ribeira de Seda);
  • passará a integrar em rede um sistema já existente, centrado nas barragens de Montargil e Maranhão, que se materializa no Aproveitamento de fins múltiplos do Sorraia, aumentando de forma muito significativa o potencial de regularização das respetivas disponibilidades hídricas (rega, consumo humano, produção de energia, lazer e turismo);
  • permitirá a adaptação da agricultura desta região do interior ao processo de alterações climáticas em curso, com repercussões evidentes para a coesão territorial e social.

Dir-se-á que o projeto do Pisão-Crato é caro (cerca de 95 milhões de euros), razão pela qual nunca avançou, e que a utilização agrícola não conseguirá pagar o investimento em causa. É um facto. Mas, cada vez mais, as contas devem incorporar outras dimensões e uma visão mais lata dos respetivos benefícios:

  • qual será a evolução da região (em termos socioeconómicos), caso o projeto não venha a ser uma realidade?
  • que custos (sociais, económicos e ambientais) resultarão da opção de não avançar com este tipo de intervenções, em regiões com as caraterísticas de interioridade como aquela que aqui está em causa?
  • que outras externalidades positivas resultarão desta iniciativa?

Por último, este projeto, para além de cumprir com os critérios que deverão nortear os futuros investimentos públicos neste tipo de infraestruturas, poderá integrar-se de forma exemplar num outro projeto, atualmente em fase de maturação da sua ideia: o projeto Mais Tejo.

O projeto Mais Tejo: revitalizar o rio Tejo, utilizando-o

Este é um projeto novo. De forma muito resumida, o projeto Mais Tejo, que tem sido objeto de apresentação e discussão ao longo dos últimos meses, assenta numa ideia muito simples: como poderemos revitalizar o rio Tejo tirando maior partido dos seus recursos hídricos?

O projeto propõe que se utilize o rio como “canal” principal de um sistema de fins múltiplos, contribuindo em simultâneo para resolver ou minimizar os efeitos de um conjunto vasto de problemas com que o Tejo se depara atualmente: promove a sua navegabilidade, trava a avanço da cunha salina a partir da foz, aumenta os volumes de água disponíveis para os diversos fins, garante qualidade na água para abastecimento humano, promove o regadio e a atividade económica em torno do rio.

A espinha dorsal do projeto é o próprio rio, que passará a ser equipado com um conjunto de açudes, espaçados em cerca de 20 km uns dos outros, que permitirão uma efetiva regularização do seu caudal. Como possível reforço e autonomia de gestão dos recursos hídricos que afluem ao rio, prevê a possibilidade de construção de um conjunto de barragens (Alvito, Ponsul, Crato-Pisão e Tera), bem como a adoção de princípios diferentes na gestão de outras (caso de Castelo de Bode).

Este projeto integra, de forma clara, os princípios que deverão nortear os investimentos públicos nesta matéria:

  • constitui-se como uma rede capilar, que integra e dá consistência a diversas infraestruturas já existentes;
  • expande a ação do rio tejo (através de estações elevatórias, canais e reservatórios) para a área de influência das “ribeiras do Oeste”, para a península de Setúbal e para o Vale do Lis, reduzindo a necessidade de utilização de águas subterrâneas para os diversos fins;
  • reforça a ligação em rede entre o vale do Tejo, o vale do Sorraia e o vale do Lis dando novo significado e relevância às atuais barragens de Montargil e do Maranhão, bem como às infraestruturas do perímetro de rega do Lis;
  • ganha significado acrescido numa estratégia nacional que vise o aumento da capacidade de armazenamento das águas superficiais, enquanto valor estratégico para o país, ao incorporar um conjunto de barragens diversas, das quais me permito destacar a barragem do Alvito e a do Crato-Pisão.

 

Concluo com um desejo. Uma vez que estão já decididos (e bem!) os investimentos que incorporarão o Plano Nacional de Regadios (a financiar pelo Plano Juncker/BEI e pelo PDR2020), seria importante que se avançasse rapidamente para a construção do PNR – Fase 2, alcançando um horizonte temporal mais alargado, que permitisse guiar a ação do Estado nesta matéria para além do horizonte das legislaturas políticas. A ver vamos o que o futuro nos traz.

 

Francisco Gomes da Silva

Professor do Instituto Superior de Agronomia e sócio fundador da Agro.gés

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