Um país deprimente – Henrique Pereira dos Santos

Não, não vou escrever sobre os anúncios do governo sobre habitação, todos conhecemos a técnica habitual que António Costa usa para reganhar iniciativa política, que consiste em pegar num tema com grande potencial populista, anunciar mundos e fundos, juntar-lhe uns milhões que ninguém sabe como se calculam e explicar que vai tudo ainda ser discutido, mas que o governo está empenhado em resolver isto aquilo com medidas que são mais ou menos assim, a adoptar num calendário fluido, suficientemente longo para que entretanto haja outro assunto sobre o qual o governo vai ter um intervenção histórica e sem precedentes.

Vou mesmo escrever sobre uma sessão para que me convidaram ontem e cujo programa era este.

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Comecemos pelo princípio: o ministro da economia chega com meia hora de atraso para uma sessão que deveria durar duas horas, e começa a sua intervenção sem o menor pedido de desculpas (fui verificar na gravação, não acreditei que a minha memória dos factos estivesse certa).

Poder-se-ia dizer que é uma questão de pormenor, mas não é, é mesmo uma concepção de poder cesarista, em que um ministro, por ser temporariamente ministro, se acha no direito de ter uma assembleia qualificada (e que fosse desqualificada, só falo na qualificação por causa do preço hora de trabalho de cada uma das pessoas que ali estão), cheia de altos quadros e dirigentes da administração pública, de académicos no topo da carreira, de altos comandos militares, de membros dos conselhos de admnistração de empresas e mesmo de pobres homens da Póvoa, como eu, meia hora à sua espera (uns milhares de euros deitados ao lixo) e nem sequer tem a percepção do transtorno e da destruição de valor que causa, ao ponto de pedir desculpa pelo atraso.

Francamente, não só não considero isto uma questão de pormenor (uma pessoa que não sabe gerir o seu tempo pessoal acha-se qualificada para gerir um país), como é mesmo uma característica deprimente do país e do exercício do poder (lembro-me bem de uma reunião cheia de ministros e administradores dos maiores grupos económicos do país, em que eu por acaso estava, no gabinete do então primeiro ministro António Guterres, em que a meio da reunião Belmiro de Azevedo se levanta, dizendo que tinha um comboio para apanhar e que não era responsabilidade dele o atraso do senhor ministro da agricultura que tinha atrasado o começo da reunião em mais de uma hora, ou coisa do género, e ele tinha o compromisso, com a mulher, de estar em casa às oito da noite. O que me deprime é que no país seriam muito poucos os que fariam o que vi Belmiro de Azevedo fazer nesse dia).

Depois deste começo, a reunião segue com uma intervenção indescritível do senhor ministro da economia, que desfia uma série de lugares comuns embrulhados na linguagem da moda (a internet do território e tolices semelhantes), sem o menor pudor de dar como exemplo de investimento no interior o investimento da Riopele (uma empresa textil do vale do Ave, localizada em Famalicão, esse concelho longínquo do interior) e, o mais deprimente, demonstrando não ter percebido nada do problema de gestão florestal e do território com que o país está confrontado.

Segue-se então o que me tinha levado à sessão, a apresentação do estudo, feito pro bono (como alguém comentava em surdina, a diferença entre o sexo pago e o sexo não pago é que este último é muito mais caro), pela BCG.

O problema não é da BCG, um dos meus sobrinhos penso que trabalhou lá, uma das minhas filhas trabalhou na McKinsey, portanto tenho uma ideia relativamente próxima de como funciona o mundo das consultoras, às quais se aplica a fórmula geral dos computadores: shit in, shit out.

O problema é ter a percepção de que a BCG fez o melhor que sabia – é natural que a vantagem competitiva de uma BCG não seja a sua competência em gestão florestal – e trabalhou com a informação que lhe foi transmitida pelos parceiros, que incluem seguramente as entidades que no Estado têm responsabilidade e tutela da gestão florestal e do território.

Não sei que parceiros foram envolvidos e de que maneira os proprietários e gestores florestais foram ouvidos (na mesa redonda que se seguiu estava um gestor industrial, um académico que estuda o mundo rural há anos, tendo sido ministro da agricultura de Vasco Gonçalves, um académico da economia que há muito estuda a fileira florestal sem nunca ter percebido que a ausência de gestão não reage a estímulos fiscais, e uma académica, dirigente de organizações ambientais e política ligada ao PS, mas nenhum proprietário ou gestor florestal que dependa da floresta para pagar as suas contas no fim do mês.

O resultado é mais um estudo, com mais 50 medidas a adoptar para resolver um problema que está mais que identificado há anos: gerir combustíveis finos custa mais dinheiro que o que se retira da actividade da produção florestal, em grande parte do território.

Toda a gente parecia convencida que havia um grande problema de diminuição da área florestal em Portugal, sem que eu perceba porquê: grande parte da área florestal que temos é lixo, autêntica sucata florestal, que é um passivo, e não um activo, ao contrário do que foi sempre dito pela BCG e pelos restantes participantes.

Esperei para saber se para o público haveria oportunidade para perguntar porque raio perder floresta, isto é, reduzir a sucata florestal que é um passivo, era um problema assim tão grande, e para fazer a minha sugestão inspirada na famosa frase do paredão inacabado e com obras paradas, de Alqueva “Paguem a gestão de combustíveis aos proprietários que tenham menos de 50 cm de mato nos seus terrenos, porra!, esqueçam o resto das medidas”.

Apercebi-me que não estava previsto que o público falasse (parece que depois, quando a sessão que tinha começado meia hora mais tarde, que deveria acabar pelas cinco, e que às cinco e um quarto ainda estava em jogos florais entre os convidados, afinal ainda se abriu aos comentários do público, lá pelas cinco e meia, mas eu já tinha desistido) e fui-me embora, antes do fim.

E é isto o meu país, deprimente, profundamente deprimente.

O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.


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