Um país sem dono

Um país sem dono

Um quinto do território florestal nacional tem proprietário inexistente ou desconhecido. O Governo tem 86 milhões de euros para fazer o cadastro rústico, mas ainda não conseguiu.

Vem aí o Verão e, com a chegada do calor, os tão temidos incêndios. Esta é uma ferida sempre aberta em Portugal e um dos maiores dilemas por solucionar no país. Carlos Lobo, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, founding partner da Lobo, Vasques & Associados e também antigo secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, garante que o problema não está nos eucaliptos ou nos pinheiros, mas na existência de áreas florestais abandonadas que não são geridas, sendo, por isso, uma fonte de risco incontrolável. Na sua opinião, a tragédia de 2017, o pior ano de fogos de sempre, deveu-se precisamente ao facto de os terrenos estarem abandonados. “Temos um problema de não gestão. Nem se pode chamar má gestão porque, na prática, não sabemos quem são os proprietários” – uma opinião partilhada por Sarmento Beires, administrador na Bosque – Inovação e Desenvolvimento Florestal.

Segundo o Perfil Florestal, publicado em 2021 pelo Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), “estima-se que mais de 20% do território não possui dono ou este é desconhecido”. Apenas 3% dos terrenos florestais são detidos por entidades públicas (Estado e outros entes públicos), sendo o remanescente detido por comunidades locais (configurando os terrenos designados por baldios, cerca de 6%) e por proprietários privados (91%, cujo número ascende a várias centenas de milhares), sendo 4% geridos por empresas industriais. O mesmo documento refere ainda que apenas 46% dos espaços florestais possuem cadastro predial, ao contrário da União Europeia, onde precisamente 60% da floresta é privada, segundo o Eurostat.

Não se sabe ao certo o número de proprietários florestais em Portugal. O livro “O Futuro da Floresta em Portugal” refere 400 mil, mas a falta de cadastro impede saber qual o número exacto. Conforme os últimos dados do Perfil Florestal (2018), apenas 46% dos espaços florestais possuem cadastro predial. Existem 11,7 milhões de prédios rústicos com uso agro-florestal e 1107 unidades de baldio.

Há dinheiro, o que falta?

Curiosamente, dinheiro não falta, porque estão programados no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) 615 milhões de euros para a floresta, dos quais 270 milhões para a transformação da paisagem dos territórios e floresta vulneráveis, 86 milhões para o cadastro de propriedade rústica e do sistema de monitorização de ocupação do solo, 120 milhões para as faixas de gestão de combustível – rede primária –, 89 milhões para a prevenção e combate a incêndios rurais e, por fim, 50 milhões para o programa Mais Floresta.

Para Carlos Lobo, é urgente actuar porque, quanto mais tempo passa, pior fica a situação pois, devido à desertificação das terras e ao envelhecimento da população, perde-se muita informação. Fica a dúvida: de quem é o terreno? “O direito sucessório, por via das heranças, é outra vertente que, embora não diga respeito directamente à legislação florestal, leva a fragmentações excessivas dos terrenos rústicos. Isto agrava a capacidade de gestão. Não pode continuar”, diz, apontando ainda o dedo às heranças indivisas, as quais fazem com que grande parte do país esteja ao abandono. “Nem faz sentido que 30% das parcelas estejam em mão morta, o que é de impossível gestão no sistema jurídico.”

Sarmento Beires afirma ser fundamental um cadastro, realizando um levantamento dos proprietários dos terrenos. “Esse é o trabalho de base. Tem de ser feito o mais rapidamente possível, até porque podemos ter a melhor política florestal do mundo mas, sem conhecer os proprietários, não conseguimos aplicá-la”, corrobora o antigo secretário de Estado dos Assuntos Fiscais.

Orçamento existe, segundo o Plano de Recuperação e Resiliência, que afectou em 2022, para o cadastro da propriedade rústica e do sistema de monitorização de ocupação do solo, 31 milhões de euros, dotando o país de conhecimento actualizado e detalhado do território, quer a nível cadastral, com a identificação dos proprietários da terra e dos limites e caracterização da propriedade, quer da cartografia de referência, sobre a qual possam assentar diversos processos de planeamento de âmbito nacional, regional e local.

Pedro Serra Ramos, presidente da Associação Nacional de Empresas Florestais, Agrícolas e do Ambiente (ANEFA), também concorda que é urgente cadastrar as propriedades, deixando de existir esta espécie de jogo entre o gato e o rato.

“Há sempre o receio de mexer no cadastro rústico devido ao medo de subida dos impostos e de que os proprietários se afastem dos terrenos”, diz, ironizando: “Se o Estado quisesse mesmo realizar o cadastro seria apenas uma questão de fazer um esforço, pois […]

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