Sim, claro que reconheço uma responsabilidade dos governos no estado a que chegou a administração pública portuguesa – não, o problema maior não é a corrupção ou a partidarização, o problema maior é a erosão da lei e das regras -, mas a história que vou contar é mesmo sobre a responsabilidade da administração ela mesma.
Volta, não volta, escrevo sobre o Porgrama de Transformação da Paisagem (há vários posts por aí, este serve de exemplo) e mais uma vez volto ao assunto depois de ler o Público de ontem (ou melhor, esta parte do Público, o resto lerei a seu tempo, não faço questão nenhuma de ler os jornais no dia em que são publicados).
Estranhei a chamada de primeira página: “Há uma revolução silenciosa em curso na floresta portuguesa com novas áreas integradas de gestão florestal”.
Esta frase está tão fora da realidade, que fiz o que faço habitualmente: fui ver quem assinava esta peça.
A minha estranheza aumentou. Não conheço pessoalmente Teresa Silveira, mas conheço o seu trabalho e, independentemente de diferenças de pontos de vista, está longe de ser o trabalho de uma câmara de eco da propaganda de terceiros, a única justificação possível para se publicar uma frase como a que citei, a propósito dos planos de transformação da paisagem.
Fui ler, como o Augusto Gil foi ver.
Afinal o trabalho de Teresa Silveira correspondia à ideia que tinha dela, a chamada de primeira página é que era completamente abusiva, colocando certezas onde a peça em causa só tinha dúvidas, incerteza e um saudável cepticismo por parte dos potenciais interessados.
Fé, só mesmo do lado da administração: “Acredita-se que os beneficiários dos territórios (entidades gestoras, proprietários, produtores e outros intervenientes) não quererão desperdiçar a oportunidade de ter um financiamento que está alocado a estes territórios e que é comparticipado a 100%”.
Recapitulemos.
Os governos (vários) são ciclicamente confrontados com fogos com um grande potencial de desgaste político.
Estes fogos resultam de um processo económico e social profundo, associado ao abandonono que resulta da falta de viabilidade económica da gestão do território.
Como ter propostas políticas eficazes para lidar com esse abandono é difícil em si, politicamente pouco compensador e exige constância das políticas públicas ao longo do tempo, os governos preferem usar os recursos em coisas politicamente menos arriscadas e mais compensadoras, reagindo ao tais grandes fogos cíclicos escolhendo um moinho de vento contra o qual investem de forma politicamente rentável, isto é, tomam decisões históricas cujos resultados se verão daqui a muitos anos, como é próprio das políticas de gestão do território.
Como quando o falhanço dessas opções for de tal maneira evidente que não possa ser negado o governo já é outro, culpa-se os governos anteriores pelas péssimas opções feitas, escolhe-se um novo espantalho, e agora é que vai ser.
O actual primeiro-ministro escolheu o eucalipto e a falta de ordenamento do território como espantalhos (da outra vez que estava no governo quando houve problemas sérios tinha escolhido a melhoria do combate, com a criação da autoridade nacional de protecção civil, mas isso agora não interessa nada).
Uma administração pública que cumprisse a sua missão teria a obrigação de deixar claro que o eucalipto não é tido nem achado para o assunto, no essencial (a investigação científica que existe sobre o assunto tem resultados esmagadores neste sentido) e que o problema não seria de ordenamento do território mas de economia das actividades que gerem o território (a investigação sobre o assunto tem resultados esmagadores sobre o assunto).
Não, esta administração pública que temos assume que a sua missão é dar cumprimento às orientações políticas do governo, não compreendendo que uma coisa é a legítima opção política do governo, a que a administração tem de dar seguimento, outra coisa são fantasias sem relação com a realidade, que a administração tem obrigação caracterizar como tal (se, depois disso, o governo insiste em governar contra a lei da gravidade, isso é com ele, o que a administração não pode é aceitar que o governo negue a lei da gravidade e a administração actue como se a lei da gravidade dependesse da vontade do governo).
Por isso escolhe uns académicos que sirvam para dizer que a lei da gravidade é uma construção social, monta uns processos de decisão que partem do princípio de que as pedras caem para cima e, no fim, argumenta: isto vai funcionar porque ninguém quer perder 220 milhões a fundo perdido.
Ninguém vai deixar esses 220 milhões perdidos por aí, esses vão com certeza ser usados, o problema de base é que vai ficar exactamente na mesma, até que o próximo governo tenha margem de manobra para dizer que os anteriores eram todos uma bestas, tomaram decisões erradas, inventar um novo espantalho e … agora é que vai ser.
Com o beneplácito e o apoio de todos os rolhas que hoje povoam esta administração sonâmbula com que temos de conviver.
O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.