Henrique Pereira dos Santos

Uma questão de doutrina – Henrique Pereira dos Santos

“todas as redes primárias de gestão de combustíveis que deveriam ter retardado o incêndio e até afunilando a cabeça do incêndio, simplesmente não funcionaram”.

Esta frase, de um formador da escola nacional de bombeiros, aparece num post (em rigor, nos seus comentários, uma discussão entre bombeiros sobre o fogo da serra da Estrela), não público, e pedi autorização ao seu autor para a usar por me parecer um belíssimo exemplo do que permite explicar uma das maiores ineficiências na afectação de recursos na gestão do fogo em Portugal (outros países não sei como funciona, vi um comentário que, a propósito de um grande incêndio em França, falava do facto do fogo já ter passado seis ou oito faixas de gestão de combustível).

O fundamento técnico para a criação de uma rede de faixas de gestão de combustível é simples.

Com a quantidade e estrutura de combustiveis adequada e as condições meteorológicas mais favoráveis ao fogo, qualquer incêndio florestal rapidamente ultrapassa a capacidade de extinção, isto é, é impossível, quaisquer que sejam os meios usados, extinguir a cabeça do incêndio.

O que se pretende, com uma rede de faixas de gestão de combustíveis, é criar compartimentos de paisagem, delimitados pelas tais faixas de gestão de combustíveis, em que a quantidade e estrutura dos combustíveis é gerida (como o nome indica) de modo a que os incêndios, naquela faixa, ocorram dentro da capacidade de extinção.

Ao contrário do que é frequentemente admitido – e que a frase com que começo o post ilustra optimamente – as faixas de gestão de combustível não têm como função impedir a progressão do fogo, têm como função criar uma oportunidade de combate.

Para que sejam úteis, é preciso duas coisas, do lado do combate: 1) capacidade de avaliação do fogo, antecipando, em uma, duas, três ou mais horas, a evolução do fogo de forma a que as oportunidades criadas sejam claramente identificadas e, se for caso disso, potenciadas por intervenções nessas faixas de gestão, seja com máquinas de rasto, ferramentas manuais ou fogo de gestão; 2) que os meios sejam posicionados de forma a que seja possível aproveitar a oportunidade, isto é, que haja meios de combate que estejam na faixa de gestão e a usem para aproveitar a quebra de intensidade do fogo, por diminuição de combustível disponível para a progressão do fogo (isto é, com menos de 0,5 cm de diâmetro), para extinguir essa frente (nada disto tem grande utilidade para outra coisa, que é a gestão das projecções).

Ora a doutrina de protecção civil que temos hierarquiza, e bem, as prioridades de intervenção: 1) salvar vidas; 2) salvar edificado e infraestruturas; 3) salvar património natural; 4) salvar activos florestais (essencialmente, povoamentos florestais com valor comercial); 5) diminuir a área ardida.

Note-se que o principal indicador que usamos na discussão dos fogos é a área ardida, que é a última das prioridades, mas passemos por cima desse pormenor que parece ser também uma boa ilustração da fragilidade do nosso sistema de avaliação de desempenho nessa matéria (para a prevenção estrutural usamos indicadores de processo, como euros gastos, ou quilómetros executados, mas não usamos indicadores de resultado, como frequentemente fazemos em políticas públicas, infelizmente).

Partindo desta doutrina de protecção civil, é inevitável que o combate florestal seja a última das prioridades do dispositivo de combate (José Miguel Cardoso Pereira escreveu um texto notável sobre isto, que espero que publique brevemente) e, consequentemente, seja mais racional usar os recursos em função da prioridade de defesa de vidas e bens construídos ou de infraestruturas, que usá-los nas faixas de gestão de combustível e outras oportunidades de controlo da frente de fogo (mais uma vez, José Miguel Cardoso Pereira, há anos que diz que ao contrário do nome oficial “defesa da floresta contra incêndios” o que temos é um sistema de “defesa em relação aos incêndios que vêm da floresta”).

Pessoalmente, sem ser a minha área de trabalho, e portanto admitindo que me falte informação, parece-me cada vez mais evidente a necessidade de separar duas funções distintas e atribuí-las a duas organizações diferentes: 1) funções de protecção civil, atribuídas às corporações de bombeiros, largamente assentes em voluntariado e em associações humanitárias; 2) funções de combate florestal, atribuídas a corporaçõe de bombeiros florestais profissionais, que trabalham todo o ano na mesma área, ou sob as mesmas orientações, durante o Inverno na prevenção, durante o Verão no combate florestal.

Sem esta separação funcional, não vejo como alguma vez um comandante queira correr o risco de ser acusado de desguarnecer a defesa de vidas e povoações por alocação de meios a uma faixa de gestão de combustiveis perdida no cimo de uma serra, com o objectivo, sempre incerto, de travar a cabeça de um incêndio no meio de nenhures.

O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.


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