“Visão para a agricultura” da Europa é míope, acusam ambientalistas

A Comissão Europeia apresentou nesta quarta-feira a sua “Visão para a Agricultura e a Alimentação”, a estratégia de longo prazo até 2040. Pretende, por exemplo, dar novo fôlego ao sector com apoios financeiros mais adequados para atrair e manter nesta actividade agricultores mais jovens, ou enquadrar melhor o uso de pesticidas. Mas as organizações ambientalistas que participaram no diálogo estratégico sobre o futuro da agricultura, que decorreu no ano passado para desenvolver estas orientações, dizem que o documento não reflecte o consenso a que tinham chegado.

“Depois de todos os intervenientes no sistema agro-alimentar terem chegado a um consenso histórico e significativo sobre o futuro da agricultura na Europa, o que vimos hoje são apenas passinhos de bebé na direcção correcta. A visão [da Comissão] tem falta de visão”, afirmou Célia Nyssens-James, do European Environmental Bureau (EEB), que representa cerca de 180 organizações em 40 países, da UE e não só, num comunicado divulgado nesta quarta-feira.

Nyssens-James refere-se ao Diálogo Estratégico sobre o Futuro da Agricultura da UE, um processo consultivo que a Comissão Europeia desenvolveu no ano passado com a sociedade civil, comunidades rurais, academia e o sector agro-alimentar para criar este roteiro, que traça as reformas necessárias para o orçamento agrícola da UE, no valor de 400 mil milhões de euros. No início de Fevereiro, as organizações não-governamentais (ONG) expressavam o seu agrado por considerarem que o peso dos lobbies industriais foi mitigado nas negociações.

Mas agora que o comissário europeu Christophe Hansen revelou o resultado do esforço desse Diálogo Estratégico sobre o Futuro da Agricultura da UE, as ONG de ambiente não se mostram muito entusiasmadas − dizem que esta visão é algo míope.

“Há uma notável falta de medidas e metas ambientais ou de um aumento do orçamento para pagamentos ambientais às explorações agrícolas, apesar de ter sido reconhecida a necessidade de a agricultura respeitar os limites planetários e contribuir para a acção climática”, salienta o EEB. A ONG nota ainda “sinais de que, em nome da ‘simplificação’,​ podem ser desmanteladas as regras ambientais que ainda persistem como condições dos pagamentos agrícolas”.

“Tímido”

A Comissão diz que ainda em 2025 será proposto “um pacote de simplificação abrangente para o actual quadro legislativo agrícola”. Reconhece ainda que os “agricultores devem ser recompensados pela adopção de práticas respeitadoras da natureza” e que a agricultura europeia tem um papel importante na transição para uma economia de baixo carbono.

A Visão para a Agricultura e a Alimentação hoje apresentada faz um mapa da estrada a percorrer no sector até 2040. Promete reformar a Política Agrícola Comum (CAP), cortando na burocracia para direccionar os subsídios “para os agricultores que mais precisam deles”. Isto sugere uma mudança na forma actual de cálculo, que actualmente depende do tamanho das explorações, o que favorece as maiores.

O EEB considera este documento “tímido”, comparando-o com versões anteriores que circularam. Algo de semelhante diz o Fundo Mundial para a Protecção da Natureza (WWF): “Esta visão dá passos muito tímidos para a criação de cadeias de abastecimento alimentares sustentáveis na UE”, comenta Giulia Riedo, da WWF.

“Tem alguns elementos positivos, como um compromisso com o cumprimento da legislação ambiental. Mas, ao tentar satisfazer toda a gente, a Comissão Europeia não lidou com questões fundamentais, como a necessidade de aumentar os pagamentos ambientais. E isso fazia parte do consenso a que se chegou no Diálogo Estratégico sobre o Futuro da Agricultura da UE”, salienta Giulia Riedo, citada em comunicado.

Alinha com indústria nos pesticidas, diz ONG

O plano prevê limitar a importação para a UE de produtos agrícolas tratados com pesticidas proibidos no espaço europeu. Em linguagem burocrática de Bruxelas, procura-se “um maior alinhamento das normas de produção dos produtos importados, a fim de garantir que as normas ambiciosas da UE não conduzam a desvantagens competitivas”.

“A UE deve reduzir os níveis máximos de resíduos de todos os pesticidas proibidos, e não apenas dos mais perigosos”, diz Rede de Acção contra os Pesticidas

O comissário europeu Hansen sublinhou, em entrevista ao jornal Le Monde, a intenção de acelerar as autorizações para a entrada no mercado de biopesticidas − nos quais se incluem substâncias naturais que ajudam a controlar pragas, como a bactéria Bacillus thuringiensis contra lagartas −​, mas também organismos modificados através de novas técnicas genómicas cuja legislação a União Europeia está a tentar flexibilizar.

Mas o que salienta a Rede de Acções Contra os Pesticidas Europa (Pesticide Action Network, PAN Europa) é que o documento da Comissão Europeia “contém a narrativa não científica da indústria sobre os pesticidas”. A PAN Europa sublinha que é redutor fala-se em reduzir os níveis máximos de resíduos de pesticidas apenas nos “pesticidas mais perigosos”.

“Para proteger a competitividade dos nossos agricultores, bem como a saúde dos cidadãos e dos ecossistemas, a UE deve reduzir os níveis máximos de resíduos de todos os pesticidas proibidos por questões de saúde e ambientais, e não apenas ‘dos mais perigosos’, como se diz na Visão para a Agricultura”, afirma Kristine de Schamphelaere, da PAN Europa, citada em comunicado.

A Comissão Europeia retirou uma proposta de directiva para a redução de 50% do risco e da utilização de pesticidas químicos há um ano, após protestos de agricultores em vários países que, entre outros factores, visavam regras ambientais demasiado complicadas, bem como o sistema de pagamentos.

“Todos os pesticidas são perigosos. Este documento parece favorecer a indústria de pesticidas em vez dos agricultores europeus e a saúde dos cidadãos e ecossistemas”, frisou Schamphelaere.

Compromisso com bem-estar animal

A Bird Life Europe é igualmente crítica, salientando um aspecto do consenso do diálogo estratégico que não se reflectiu no documento final: a necessidade de promover uma alimentação com menos carne.

“A ciência demonstrou vezes sem conta que diminuir o consumo de carne pode ajudar a combater a crise climática, reduzir a poluição e melhorar a saúde. Mas a visão [do comissário Christophe] Hansen não aborda os impactos ambientais e na saúde do sector da pecuária. Em vez disso, aplaude [a pecuária], sem apresentar nenhum plano tangível para uma transição na dieta”, sublinha a organização ambientalista em comunicado.

O plano apresentado nesta quarta-feira promete a apresentação de uma visão de longo prazo para o sector da pecuária e ainda um plano para o consumo de proteínas, que inclui um aumento da produção na Europa de fertilizantes − actualmente, a UE está muito dependente da importação de países como a Rússia.

A EEB saudou, no entanto, o compromisso com novas e melhoradas regras de bem-estar animal, com a garantia do fim dos vários tipos de gaiolas ou outras formas e confinamento em que são encerrados animais nas explorações agrícolas, desde vacas a galinhas – aliás alvo de uma popular petição europeia, em que mais de um milhão de cidadãos pedem o fim dessa prática.

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